Não, o mais icônico álbum do Pink Floyd não é sobre a situação da construção civil :P
Em sua apresentação solo na noite desta terça-feira (9), em São Paulo, o baixista e um dos principais compositores do Pink Floyd, Roger Waters, não apenas listou um determinado nome entre a lista de neofascistas do mundo, ao lado de Trump e Putin, como também estampou a hashtag da campanha #EleNão lá no telão do Allianz Parque, pra não restar dúvidas.
O posicionamento político do Pink Floyd, enquanto banda que estava na ativa, e em especial do próprio Waters, já é amplamente conhecido — recentemente, por exemplo, ele se empenhou em uma campanha enorme conclamando a classe artística a não tocar em Israel justamente por conta da questão da Palestina.
De qualquer forma, aqui no Brasil, teve gente aplaudindo. Teve gente xingando. Teve gente vaiando. Teve gente dizendo que ele é gringo, que não entende nada da situação do nosso país. E teve gente, claaaaaaaaaro, dizendo que tava tudo muito bom, até ele misturar música e política. As mesmas pessoas para as quais Roger Waters escreveu The Wall, o disco duplo conceitual do Pink Floyd lançado em 1979 e que se tornou um dos maiores clássicos da banda e que não se trata sobre um muro DE VERDADE. É, na verdade, um manifesto antifascismo sobre uma muralha metafórica que o músico queria erguer entre ele e a plateia que simplesmente não estava prestando atenção no que ele cantava — o que, na sua passagem anterior por aqui, ele fez literalmente.
As sementes de The Wall, 11o disco de estúdio da banda inglesa e um dos discos mais vendidos de todos os tempos, começaram a ser plantadas em 1977, quando o Pink Floyd embarcou na turnê In the Flesh — a primeira deles tocando em grandes estádios, com superprodução, aquela coisa toda megalomaníaca de luzes e efeitos especiais.
E foi aí que começou a surgir a insatisfação do músico, pistola porque começou a perceber que seus shows se tornaram muito mais eventos sociais do que, de fato, uma oportunidade de interação entre público e banda. Segundo ele mesmo já explicou inúmeras vezes, eram só pessoas grudadas ali na frente berrando e pulando, sem de fato OUVIR o que estava sendo cantado. No show final desta turnê, em Julho de 77, no Estádio Olímpico de Montreal, ele chegou a ficar tão irritado com um grupo de fãs que mandou uma cusparada neles. Para o produtor Boz Ezrin e um grande amigo, psiquiatra, chegou a confessar que tamanha alienação o fazia ter vontade de construir um muro ao redor do palco.
Desta forma, em Julho de 78, ele chegou com nada menos que DUAS ideias para discos conceituais, apresentadas pra banda – a primeira delas, com o título provisório de Bricks in the Wall, acabou sendo aceita pelo restante dos integrantes. Já a segunda, sobre os sonhos de um homem envolvendo sexo, casamento, família e monogamia x promiscuidade, se tornaria mais tarde seu primeiro disco solo, The Pros and Cons of Hitch Hiking.
Gravado entre dezembro de 1978 e novembro de 1979, The Wall acabou se tornando o último disco com a formação clássica que trazia Waters, David Gilmour (guitarrista), Nick Mason (baterista) e Richard Wright (tecladista). Tamos falando aqui de uma rock opera sobre abandono e isolamento, estrelada por uma estrela do rock de nome Pink, inspirada no próprio Waters e no falecido líder original do grupo, Syd Barrett.
O personagem principal é um músico que perde o pai na Segunda Guerra (Another Brick in the Wall – Part 1), que convive com uma mãe superprotetora (Mother) e é abusado pelos professores tiranos na escola (The Happiest Days of Our Lives), que querem que ele seja apenas mais um e não desenvolva... que rufem os tambores... PENSAMENTO CRÍTICO.
Atormentado por todas estas lembranças é que ele começa a desenvolver o tal “muro” ao seu redor, cristalizado pela lendária canção Another Brick in the Wall – Part 2, afastando-o do restante da humanidade. Conforme Pink cresce e se envolve com o mundo da música, seus relacionamentos, sejam eles amorosos ou não, passam a ser marcados por infidelidade, muita droga e surtos de violência.
Vítima de uma depressão gravíssima, ele perde totalmente a sua fé e, em busca de uma solução para que pelo menos consiga continuar tocando, acaba procurando um médico, que receita uma série de medicamentos que, no entanto, o deixam dopado (Comfortably Numb) e sofrendo uma série de alucinações. No palco, ele passa a acreditar que é um ditador fascista se apresentando para hordas de seguidores numa pegada bem neonazista, julgando os fãs que podem ou não ser dignos de sua atenção. Quando finalmente se dá conta de todo o horror que se tornou sua vida, Pink pede que tudo isso pare e, atormentado pela culpa, faz um julgamento de si mesmo (The Trial) e resolve derrubar o tal muro, abrindo para o mundo externo (Outside the Wall).
Se você quiser LER todas letras, levando em consideração este resumo da história. Vai lá, a gente te espera. ;)
The Wall se tornaria, em 1982, um filme que mistura animação e live-action, com roteiro do próprio Waters, desenhos do cartunista político Gerald Scarfe (atualmente rabiscando pro jornal Sunday Times) e direção de Alan Parker (Commitments – Loucos pela Fama). Obviamente, claro, as músicas do disco tocam ao longo da projeção, ajudando a dar o tom da história – repleta de tomadas surreais, sexo e violência. No papel principal, um ainda jovem Bob Geldof, igualmente humanista, igualmente politicamente engajado, criador dos shows beneficentes Live Aid e Live 8.
Waters não é lá dos maiores fãs da versão cinematográfica, que quase não aconteceu e, por muito pouco, não foi apenas algumas animações intercalando uma apresentação ao vivo da banda. Apesar de gostar da performance de Geldof como Pink, o músico costuma descrever o produto final como “uma experiência enervante e desagradável”. Mas por mais que tenha, no fim das contas, se envolvido pouco com a produção, é fato que a película, que logo ganharia um status de cult, ajudaria a dar nova vida ao disco, levando-o de volta às paradas de sucesso.
“The Wall não oferece saída, exceto a loucura de um mundo cruel empenhado em destruir seus cidadãos usando todos os níveis de esforços”, dizia a resenha da Rolling Stone na época, publicada em 1980. Se isso não é um retrato do mundo de hoje, bicho, não sei mais o que poderia ser.