Alguém avisa pra Vogue?
Um tweet fez um certo estardalhaço na tarde dessa sexta-feira, 09 de Novembro. Publicado na noite do dia anterior, com essa mesma imagem aí de cima do remake de Suspiria, o primeiro filme do italiano Luca Guadagnino depois de Me Chame pelo Seu Nome, o texto era bastante simples: “2018 não foi bom para o horror”.
O tweet contem também um link para um artigo escrito por Taylor Antrim, jornalista e escritor, que já foi publicado por Esquire e The New York Times. Esse último texto, porém, foi escrito para a revista Vogue (suas mãos estão passeando pela sua cara nesse momento), da qual é editor-executivo. E MUITA gente reclamou, xiou, fez memes e por aí vai.
Não é nenhum problema uma revista de moda — a principal publicação do gênero do MUNDO — publicar um artigo sobre cinema. Como uma revista, eles podem publicar LITERALMENTE o que quiserem, assim como fazem Marie Claire, iD, Playboy e por aí vai. Editorialmente pode parecer estranho, mas se conversar com o público alvo da revista, perfeito — essencialmente, foi isso o que a gente fez quando falamos sobre, olha só, MODA no nosso podcast.
Nesse podcast, escolhemos um recorte (a moda para todos, em especial os gordos) e levamos a responsável pelo principal evento de moda para gordos e gordas do Brasil. Todo mundo ali sabia do que estava falando. Ninguém falou sobre tendências, o que pode, não pode. Um assunto como a MODA pode ser explorado das mais diversas maneiras... Assim como o cinema.
Talvez nosso amigo de profissão não esteja vivendo o mesmo ano que nós, os fãs e críticos especializados em horror. Ou talvez — o que aposto minhas fichas ao ler o texto — ele não tenha conhecimento suficiente sobre o gênero e ainda assim resolveu escrever sobre o assunto. Pode acontecer! ¯\_(ツ)_/¯¯
Ele abre a matéria perguntando quando foi o último bom ano para o gênero, e teoriza sobre 2017, um ano beeeeem sofrível, se comparado à 2015 e 2016, por exemplo. Ele cita os blockbusters It: A Coisa e Fragmentado, o oscarizado Corra! e uma série de filmes independentes, como Ao Cair da Noite pra mostrar quão bom teria sido o ano. Mas, tirando um ou outro filme lançado em uma espaço de tempo de 12 meses, parou por aí.
Num exercício crítico, todos os filmes supracitados, se colocarmos em uma lista dos melhores filmes de terror desde 2014 (sim, meu espírito Rob Gordon adora listas), não conseguem ficar lá nas primeiras posições do pódio se considerarmos produções salutares como A Bruxa, Corrente do Mal, O Babadook, Starry Eyes, A Enviada do Mal, O Convite, Baskin, O Garoto Sombrio, O Lamento e alguns outros.
Quando ele afirma que “algo está acontecendo e ele não tem muita certeza de haver bons filmes de terror desde então”, aí a gente vê todo o problema de um texto embasado em pouco conhecimento do assunto e, principalmente, uma pessoa que aparenta ter em seu radar apenas o mainstream e o que chega às salas multiplex.
Antrim cita que, basicamente, só tivemos Hereditário que preste em praticamente 11 meses do ano. Tá, ele acerta ao reclamar do terrorzão lançado esse ano nos cinemas, tipo bombas como A Freira, Slender Man: Pesadelo sem Rosto e A Maldição da Casa Winchester. Mas ele esquece completamente, em sua visão limitadíssima e direcionada somente ao mercado comercial de tantos e tantos petardos produzidos ou distribuídos em 2018 em salas limitadas, festivais, streaming e direct to video, que, vai por mim, de tão bons, está difícil até montar um ranking dos melhores do ano.
Como dizer que 2018 foi esse qualquer nota todo quando tivemos o “prazer sombrio” de assistir fitas como a lisergia tresloucada de Mandy; o acachapante Apóstolo (que ele até elogiou, mas colocou na categoria de “feito para TV”); o filme de criatura da década, The Ritual; o perturbador novo do Pascal Laugier, A Casa do Medo: Incidente em Ghostland; a nova bizarrice gráfica do diretor de Baskin, Housewife; o britânico com um plot twistão da porra, Ghost Stories; o found-footage irlandês infinitamente melhor que A Freira, The Devil’s Doorway; o new french extremity sanguinolento e estético Vingança; o metafísico metafórico sublime Aniquilação; o goticão trevoso The Lodgers; o lovecraftiano O Culto; e isso claro, sem falar a cena da piscina de Os Estranhos 2: Caçada Noturna, que já vale o filme inteiro; e ainda tem os nacionais O Animal Cordial, As Boas Maneiras, Mata Negra, e por aí vai...
Ainda segundo o entendimento sobre o gênero do crítico, o “horror precisa de um elemento de diversão e de prazer sombrio”. De onde o parça tirou isso eu não sei, mas sua visão sobre esses dois elementos “necessários” prum filme de terror está bastante turva. E é bastante cômico ele citar, no mesmo texto, que os filmes deste ano “não são assustadores”, um conceito bem relativo e até individual, vamos falar a verdade.
Fechando com chave de ouro, Antrim mira sua metralhadora para a melhor produção do gênero para a TV do ano, e uma das coisas mais maravilhosas, geniais, esteticamente incríveis, maduras, dramáticas, uma aula de audiovisual, que é a Maldição da Residência Hill, relatando que “é mais de 10 horas de televisão em um ritmo agonizantemente devagar”. Já vimos que minimalismo, o psicológico, a mistura com drama e a construção de atmosfera — as principais características do novo cinema indie de terror dos tempos atuais, elementos daquilo que foi escrotamente rotulado de “pós-horror” — não é pra ele, não é mesmo?
Será que o autor assistiu àquele fatídico episódio 6 de A Maldição da Residência Hill, que tem sua uma hora de duração toda gravada em apenas cinco longo takes, sendo que o primeiro é um plano sequência de QUINZE MINUTOS, parecendo uma esquete teatral ensaiadíssima cheia de travellings, grandes angulares, planos e contraplanos? A infeliz afirmação rendeu até um retweet com um “LOL” do diretor e criador da série, Mike Flanagan.
Sim, vivemos uma Era de Ouro do Horror, pelo menos sob o prisma de quem venera gênero, escreve, estuda e pesquisa muito sobre o assunto, vendo filmes e mais filmes ano após ano e os analisando e resenhando. Escrevo com alguma propriedade que, pelo menos desde 2014 — e se aumentarmos o escopo, dá pra falar dessa década toda, catapultada pelo rescaldo do mumblegore — temos um dos movimentos mais prolíficos do cinema de horror em muito tempo. Não vemos uma quantidade tão incrível de filmes bons lançados em sequência desde os saudosos anos 80. Só não percebe mesmo quem é clubista e se limita apenas a produções mainstream que chegam aos cinemas ou o famoso “tem no Netflix?” ¯\_(ツ)_/¯