A versão brasileira daquela clássica equipe improvável de super-heróis | JUDAO.com.br

Escrita por Felipe Castilho, a HQ com arte de Mauro Fodra e cores de Mariane Gusmão dá um gosto local a um tipo de time superpoderoso que a gente jamais imaginaria vendo reunido, tipo uma Patrulha do Destino steampunk

Quando a gente fala de uma equipe como a Patrulha do Destino, joia rara da DC Comics que virou uma ótima série recentemente, imediatamente pensamos num grupo de pessoas com habilidades fora do comum que, além de se tornarem heróis bastante improváveis, também acabam formando, meio a contragosto, um time bastante improvável de heróis.

É muito diferente de uma Liga da Justiça ou dos Vingadores, os melhores dos melhores reunidos para combater um mal muito maior. Estamos falando de um grupo que não tem nada em comum, que tem uma dinâmica bem esquisita e que acaba sendo forçado a enfrentar ameaças bem bizarras.

O estereótipo, bastante comum nos gibis de heróis que, vejam vocês, tentam fugir do estereótipo clássico dos supergrupos (ah, a ironia), é talvez uma das principais inspirações de Desafiadores do Destino, equipe de supers nascida aqui mesmo no Brasil e que teve um primeiro volume recentemente lançado pela AVEC Editora.

Nos roteiros, ninguém menos do que Felipe Castilho, autor que ganhou bastante destaque com o livro Ordem Vermelha, obra inaugural da série de fantasia Filhos da Degradação. Em Desafiadores do Destino, ele faz uma interessante mistura de uma pitada desta mesma fantasia que tem muito a dizer com superpoderes e steampunk.

“Imagina que a Atlântida, ao invés de afundar completamente num desastre nuclear, ela só afundou um pouquinho. Com isso, a nação se reconstruiu ainda mais forte e poderosa, o que mexeu com todos os outros reinos ‘mágicos’ do mundo, fazendo a magia evoluir junto com a tecnologia”, explica o roteirista, em entrevista pro JUDAO.com.br. “Mu, Lemúria, Império Asteca... todos eles existem lá em meados de século XIX. Esse é o mundo de Desafiadores, uma Terra com um passado meio vapor e meio magia”.

Na trama dessa HQ em particular, as ilhas Falkland são disputadas por atlantes e lemurianos, ferrando com a população original da ilha, os gorgs. Uma equipe é formada às pressas pra fazer uma intervenção diplomática: sob o comando da demoníaca Lune Lefevre, uma aventureira profissional, temos também uma mulher indestrutível, um gênio excêntrico que usou o próprio cérebro em um experimento envolvendo autômatos, um meio-atlante bilionário e um homem treinado nas artes de combate de todas as tribos indígenas das Américas. “E é exatamente aí que tudo começa: numa breve trégua entre os exércitos, o que parece uma missão simples vira uma batalha por sobrevivência onde não existe lado certo e lado errado”, completa, lembrando que o grupo pode resolver o conflito ou, quem sabe, fazer com que ele exploda de uma vez por todas. “É uma aventura bem frenética explosão, dedo no olho e gritaria”.

“Dedo no olho”. ;)

Os personagens, que obviamente acabam formando um grupo disfuncional no qual praticamente ninguém confia em ninguém são originalmente criações de dois veteranos das HQs nacionais, Marcelo Campos (Quebra-Queixo) e Ronaldo Barata (Sobrenatural Social Clube). “Acho que foi no início dos anos 2000, se não me engano, o Barata e o Campos pensaram em fazer umas aventuras pulp com a Lune, o Redhawk, o Loberstein e o Lockwood. Eles tinham descrições dos personagens, e uma ideia de que queriam algo bem aventuresco e que tivesse as estranhezas e viagens insólitas de Planetary, Patrulha do Destino e dos Desafiadores do Desconhecido. Referências, hahaha”, revela.

A dupla acabou não tocando o projeto e, em algum lugar do tempo e do espaço, os heróis ficaram parados nas pranchetas. “De início eles estavam pensando no mercado internacional e a equipe se chamava Blaze of Fate, o que parecia nome de música do Judas Priest”, diz Castilho. “E não estou reclamando!”. Num papo com o Felipe, eles acharam que o cara tinha o que era preciso pra fazer aquilo acontecer, entregaram pra ele o resumo com a descrições dos quatro personagens e uma ideia do tipo de aventura que eles queriam. “O Campos foi bem generoso e me mandou um ‘pira aí, faz o que você quiser’. Eu mantive a ideia principal deles, criei a Nay e fiz esse pano de fundo da premissa, com os impérios da antiguidade prósperos e a disputa pelas Malvinas. O grande ‘vilão’ da história era uma vontade antiga minha, e achei que ia casar bem com o background demoníaco da Lune”.

Desafiadores do Destino tem, de alguma forma, um tantinho de ooooooutro trabalho consagrado de Castilho, a trilogia literária O Legado Folclórico — aquela que faz releituras nada convencionais dos mitos e das lendas do folclore nacional, incluindo bruxas do sertão, batalhas no Rio São Francisco, uma poderosa semissereia grávida de 28 meses e um cangaceiro de All Star. Mas o jeito de enxergar a coisa foi diferente: em Legado, o leitor vai tendo uma visão do Brasil meio que em zoom out, já que as aventuras começam numa cidade do interior, com poucas lendas, e aí vão ganhando proporções maiores ao decorrer da saga e apresentando o imaginário do país de maneira cada vez mais grandiosa.

Já em Desafiadores, como os personagens são de nacionalidades diferentes, o escritor decidiu fazer o contrário e iniciar com algo que englobasse um cenário mais amplo, pra dar essa noção de como é a política dessa Terra mais mágica. “A América do Sul é cenário da aventura principal, e o Brasil é mostrado nas origens do Redhawk e num diálogo ou outro, mas pretendo explorar os mitos sob uma outra abordagem em algum outro momento”.

Sacou este “outro momento”? Pois é, caríssimo leitor. Pra quem teve a chance de ler a HQ, o final deixa claro que não será a última vez que ouvimos falar deste quinteto. “O Artur Vecchi (editor da AVEC) já falou comigo, com o Mauro e com a Mari que quer sequência, e eu empolguei demais. Tenho algumas ideias do que vem a seguir, agora só precisamos escolher uma delas e seguir em frente. Foi bem bacana trabalhar com essa equipe e com a benção do Campos e do Barata, então não vejo a hora de voltar pra esse mundo doido dos Desafiadores”.

Mas é importante lembrar, no entanto, que esta está longe de ser a primeira experiência de Castilho com o mundo dos quadrinhos. Tanto é que, com sua Savana de Pedra, lançada em 2016, ele foi finalista da recém-lançada categoria “História em Quadrinhos” do troféu Jabuti. Mas a trama, com arte de Wagner Willian e Tainan Rocha, tem uma pegada diferente, mais pesada, traçando um paralelo entre a vida selvagem da selva africana e a violência da vida nas metrópoles durante a ocupação das escolas públicas em meados de 2016. Tudo contado apenas em preto, branco e vermelho. Mas, afinal, qual é a diferença entre escrever pra uma mídia e pra outra?

“Ah, eu vejo como uma outra maneira de pensar, mesmo. Mais indireta, porque no quadrinho primeiro eu escrevo pra me comunicar com o desenhista (já que eu não desenho NADA) e isso sempre influencia na criação”, explica ele. “Pra mim, um roteiro bacana considera os pontos fortes de quem vai desenhar e a versão final é uma soma da bagagem do escritor com a de quem vai dar forma às idéias. Foi bem bacana trabalhar com o Mauro Fodra, que tem um traço único, e com a Mari, que encheu nossa HQ de vida”.

Para ele, no entanto, o gatilho pra criar é o mesmo que o da literatura e da prosa, mas a forma de ir delineando uma HQ, recalculando rota e encontrando o melhor para a história, acaba sendo bem diversificado. “O Savana acaba sendo um tanto diferente de tudo o que já produzi por não conter nada de fantasia ou ficção científica, mas contém o viés sociopolítico que está em tudo o que escrevo. Acho que é aí que dá pra encontrar uma linha de coesão entre os meus livros e HQs, um ponto em comum”.

Mas Castilho não consegue escolher aquilo que prefere, enquanto autor. “São coisas bem distintas e que ‘coçam’ em áreas diferentes do cérebro, não sei... Tanto que eu consigo descansar da escrita de um livro escrevendo um roteiro, e vice-versa. No meu mundo ideal, eu sempre estarei escrevendo um romance e um gibi”.