Uma exaltação à evolução de Kratos que não chegou a receber os créditos devidos
SPOILER! Quando você inicia o God of War (2018), vemos um homem parado em frente à uma árvore. Na árvore, a marca de uma mão. O homem tem um machado e a sua primeira tarefa controlando o velho Kratos é cortar essa árvore. O personagem, filho bastardo de Zeus (quem nunca?), não tem problemas em carregar a árvore no melhor estilo Comando para Matar. Então vemos que ele é acompanhado por seu filho, Atreus.
Um garoto falador, curioso, de quem Kratos se esforça para esconder certas cicatrizes. Acompanhamos os dois até a casa onde vivem, no meio de um campo nevado, e só então entendemos o que faziam. Estavam buscando lenha para a pira funerária da esposa de Kratos e mãe de Atreus, a quem fizeram uma promessa: jogar suas cinzas do topo do monte mais alto da região.
O primeiro God of War foi lançado em 2005 para o saudoso PlayStation 2. Era um hack’n slash com baldes de violência, que ganhou popularidade pela ação desenfreada, o design bacana e a jogabilidade firme. Era a saga de Kratos, um espartano com sérios problemas para controlar sua raiva, traído por Ares, o deus da guerra, e que iria buscar sua vingança até os confins do Hades. Entre vísceras, olhos arrancados, ossos quebrados e mini-games de orgia com deusas safadas, é um jogo que traduz bem demais uma adolescência masculina “massa véio”.
Então vieram duas continuações, que alteravam muito pouco a linguagem e o design, embora tentassem caminhar por linhas mais “interessantes”, especialmente sobre a relação entre Kratos e sua família estendida. Mas, vejam só, ele mata todo mundo no final.
Só que o tempo passa. Cory Barlog, diretor de God of War II, decidiu retornar ao tema, só que muita coisa tinha mudado. Nesse ínterim, ele mesmo havia se tornado pai. E achou interessante focar uma nova aventura de Kratos sob esse aspecto, mas com o toque genial de não esquecer o passado.
Do momento em que o jogo inicia até uma sequência bem interessante depois dos créditos, a câmera do jogo jamais corta (exceto em Game Over). E apesar de adorado pelos amantes da Sétima Arte, o plano-sequência cinematográfico nem sempre é bem usado. Tem diretores aí fazendo filmes inteiros com plano-sequência sem saber usá-lo realmente para dizer algo interessante. Aqui não só a câmera constante é um feito tecnológico assombroso, mas estarmos constantemente acompanhando Kratos, completamente focados, criando um significado extra.
Constância. Marcha ininterrupta. Estamos perante um homem que carrega tanta coisa, e que vai precisar continuar carregando, ainda mais agora precisando proteger uma criança que não entende.
A trilha sonora, do veterano Bear McCreary, é também uma marcha lenta e pesada, traduzindo a insistência moral do ensinamento espartano: não somente se arrependa de seus erros, seja melhor. A dureza com a qual Kratos trata seu filho, mostra que ao mesmo tempo em que quer que Atreus seja um guerreiro e um sobrevivente, quer esconder dele sua natureza porque nem Kratos mesmo sabe o que significa ser um homem.
Ter um filho realinhou o significado da vida de Cory Barlog, e ele quis fazer um jogo sobre isso. Não temos mais uma violência exacerbada, um aspecto posudo de machismo abobado. Mesmo sendo um jogo bastante violento, o novo God of War se apega mais à funcionalidade da linguagem do que os games anteriores. Temos até um aspecto “pacífico” que Kratos apresenta no começo: ele quer distância de problemas, embora saiba lá dentro de si mesmo que ELE MESMO é o problema. Ele é um monstro, e sua luta interna no jogo é definir a quem esse monstro pertence.
Perseguido pelas próprias cicatrizes, nem dá para culpar o Fantasma de Esparta de querer esconder tanta coisa de seu filho.
Mas Kratos encontra inteligência, inocência e amizade em Atreus, e isso o surpreende. E não é só o personagem que fica surpreso. O uso de Atreus no próprio jogo, como um auxiliador, vai completamente na contramão de outros jogos que têm um “personagem acompanhante”. Atreus traz humor, graça e sabedoria à história — além de estratégia ao gameplay. Kratos não conhece a língua do mundo nórdico onde vivem, e não faz ideia do buraco onde está se metendo. É só graças a Atreus que Kratos (e o jogador) vão conhecendo mais sobre esta mitologia diferente, estranha, estes valores morais tão alienígenas ao espartano.
E essa conexão que criamos com as pessoas mais próximas, também chamadas as vezes de “família”, nunca deixa de ser o tema central, não importa de que personagens estamos falando. E nem sempre, como no mundo real, de uma maneira positiva. Os anões que ajudam Kratos e Atreus a terem equipamentos melhores estão no meio de um feudo entre irmãos. O Estranho, o homem que bate à porta logo no início do jogo e é o principal gatilho para a trama como um todo, ganha contornos tanto de loucura quanto de tragédia à medida que vamos aprendendo o que “família” significa para ele. A Bruxa da Floresta tem coisas pesadas a dizer sobre o processo de maternidade, como pessoas estão fadadas a se prenderem pelo elo que criam com os filhos. O final do jogo usa esses personagens e essa temática para trazer um impacto emocional raro ao mundo dos games, e a promessa final da Bruxa é uma das coisas mais assombrosas que já vi nas telinhas interativas.
Mas a equipe da Santa Monica Studios não criou só uma tragédia (nórdica?) que fala com a gente no lado humano. Ela também é uma aventura com deuses, dragões, mistérios, surpresas (O DIÁLOGO FINAL, CARAMBA), um design de mundo inacreditável e mecânicas de ação e de combate que dão ao jogador uma obra praticamente completa. Uma peça de arte tão perfeitinha para o que os games conseguem atingir em termos de entretenimento e pensamento, onde um fator sustenta outro. Poxa, se você procurar direito, você encontra um ROGUELIKE ali dentro. Além de cenas de ação de tirar o fôlego e ainda uma história que consegue emocionar.
God of War está fazendo um ano de lançamento, e os jogadores só conseguiram querer mais. Já que Barlog prometeu que não haveria nenhum DLC, só nos resta a esperança de que as aventuras e perigos prometidos no final do jogo não estejam tão longe. Kratos e Atreus têm muito mais para descobrir, quer seja sobre os filhos de Odin, quer seja sobre si mesmos.