Em seis episódios, Good Omens faz o que American Gods não conseguiu em duas temporadas | JUDAO.com.br

Uma linda homenagem à Terry Pratchett, adaptação do livro Belas Maldições também é um Neil Gaiman na TV que abraça o absurdo sem medo de ser feliz e evita se perder no didatismo, fazendo um uso cirúrgico do poder de concisão

SPOILER! Quando Peter Jackson anunciou que faria uma versão para os cinemas do livro O Hobbit, eu fiquei empolgadíssimo. Afinal, tinha gostado bem do que o diretor fez com O Senhor dos Anéis, e o prólogo escrito pelo Tolkien tinha um lugar especial no meu coração como minha obra favorita do autor. Quando o que caberia em um único filme virou dois, hum, algo pareceu estranho. Mas tudo bem, vamos confiar. Mas quando o que caberia em um único filme virou TRÊS, aí o caldo entornou. O resultado? Um filme OK, um filme mais ou menos e um filme BEM RUIM. Um dos principais motivos? Esticar o que não precisa de um jeito que não deu certo. Pior combinação não há.

A adaptação televisiva de American Gods, obra do escritor Neil Gaiman, infelizmente está seguindo pelo mesmo caminho. O visual é lindíssimo, mas a história acaba sendo arrastada DEMAIS, com poucos episódios ao longo de suas duas temporadas, até o momento, que possam ser considerados destaques. Nada acontece, a tal guerra não se desenrola de fato, a história principal inevitavelmente se perde nas tramas paralelas e tudo acaba sendo mais uma desculpa para fazer um imenso road movie pelas estradas dos EUA e pelas muitas mitologias do planeta.

Ainda bem que esta NOVA adaptação de um livro escrito por Gaiman, definitivamente, não sofre deste mal. Claro, o tom de Good Omens (que saiu em livro por aqui como Belas Maldições) é diferente, está muito mais focado naquele humor nonsense que os ingleses tanto amam (tem Monty Python escrito aqui por todos os lados, a começar pela abertura e chegando num momento lindo de Em Busca do Cálice Sagrado). Eles tomam seus elementos fantasiosos e simplesmente abraçam o absurdo da situação toda, sem a necessidade de longas tomadas didáticas pra te explicar tintim por tintim do que está acontecendo. Em seis episódios, os produtores e roteiristas — o que inclui o próprio Gaiman — optam por serem enxutos, cortando o que não funciona na obra original quando transposta pra outra mídia e dando mais espaço somente para aquilo que realmente faz sentido.

O resultado é um dos grandes momentos do ano em termos de séries, que mistura um visual igualmente incrível, diálogos maravilhosos e um timing narrativo certeiro — passando, obviamente, por uma escolha de elenco simplesmente brilhante, com todos claramente se divertindo ao longo de todo o processo e sem se levar TÃO a sério. Tempere isso com escolhas adequadíssimas aos tempos de hoje, como cravar, em menos de dois minutos de série, que Deus é uma mulher (a voz de ninguém menos do que Frances McDormand) e o casal Adão e Eva eram negros, e você está definitivamente no caminho certo. ;)

Dois momentos são a clara descrição de como Good Omens soube fazer as escolhas certas na versão telinha. Quando o bebê anticristo é levado para o convento das freiras satanistas com o objetivo de que se faça a troca com a criança do embaixador americano, na real, a trama não perde muito tempo querendo definir O QUE É a ordem das mulheres que servem o Senhor das Trevas e tampouco QUEM É o tal diplomata e qual seria o seu papel na ordem das coisas. A explicação é simples e já basta, na real, para que você entenda como as peças estão colocadas no tabuleiro — afinal, o tom já estava claro e você, como espectador, simplesmente aceita aquilo e segue o jogo.

Mas aí a história se foca em tornar todo o momento da troca dos bebês numa coisa muito mais divertida do que na versão impressa. Usando um paralelo de um truque de ilusão com cartas, este momento então ganha o espaço que realmente deveria, com direito inclusive a uma tradução do que significam as trocas de piscadas entre as freiras. Ali temos Good Omens dando atenção ao que realmente importa, numa versão ampliada e que, vamos lá, faz muito mais sentido num produto audiovisual.

O outro momento de brilhantismo narrativo ao qual me refiro acontece no terceiro episódio. Antes mesmo da abertura ser exibida, a série dedica cerca de 20 minutos a mostrar sequências de encontros entre o demônio Crowley (David Tennant) e o anjo Aziraphale (Michael Sheen) ao longo da história, depois de terem se conhecido ali no Jardim do Éden. E enquanto eles brindam numa casa de bebidas na Roma Antiga ou então discutem na plateia de uma peça de Shakespeare, vamos vendo como se construiu não apenas o pacto entre os dois, eventualmente se ajudando e enviando relatórios ao Céu e ao Inferno garantindo que está tudo bem enquanto eles curtem momentos de paz entre jantares e migalhas aos patos, mas também a sua amizade. Estes 20 minutos não existem no livro mas, aqui, são cruciais para que se crie uma conexão com a dupla de protagonistas e se entenda a conexão entre eles.

Frances McDormand dá uma carga maravilhosa como a narradora LITERALMENTE onisciente, Brian Cox empresta peso como a potente e reverberante voz da Morte — e que visual incrível o dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse — e a curta porém especial participação de Benedict Cumberbatch como o Cramulhão é bem interessante. Mas o grande segredo de Belas Maldições sempre foi mesmo a química entre os personagens principais. E isso é algo que a série acerta no alvo: tá bom, tem lá um par de histórias paralelas, incluindo um bom núcleo infantil que gira ao redor de Adam Young, o jovem anticristo, além da história da herdeira de Agnes Nutter, Anathema, e dos caçadores de bruxas. Mas toda a condução deixa claro que isso tudo é penduricalho e orbita ao redor de Sheen e Tennant, que fazem jus à responsabilidade. O foco tá aqui.

Tudo com relação aos dois funciona de maneira tão especial que não só você acredita que estes dois seres improváveis, tão diferentes entre si, realmente são amigos e se gostam como VOCÊ, espectador, também quer ser amigo deles. Dá vontade de sentar pra conversar, de sair pra jantar, de entender como diabos (entendeu o que eu fiz aqui?) Crowley nunca comeu ostras... Sheen e Tennant roubam a cena sempre que aparecem: o primeiro é de uma doçura e inocência tão surpreendentes que, mesmo quando é capaz de uma mera sugestão de maldade, seu sorriso torna tudo quase como uma brincadeira de criança. E o segundo talvez esteja em seu papel mais interessante EVER (e tamos falando de um cara que foi Doctor Who e também um dos vilões mais cruéis da Marvel), um demônio sacana, por vezes sexy, por vezes assustador (repare na sequência em que ele atravessa a barreira de fogo ao redor de Londres), mas interessadíssimo no que os seres humanos podem oferecer.

É isso que rola ao longo de seis episódios, que tão prontinhos pra serem devorados, numa história esquisita e deliciosa sobre o Apocalipse que se aproxima de forma bastante atual. Pra mim, coloca tudo isso num pacote devidamente amarrado com um Bentley belíssimo cujo rádio só toca os maiores clássicos do Queen o tempo todo e BINGO, impossível errar.

Ficou mesmo pequeno pros Deuses Americanos, vencidos por um único Deus. Ou Deusa. E uma penca de demônios. Todos ingleses, claro. Melhor sorte na próxima temporada, Odin.