Depois de uma segunda temporada beeeeeeeeem abaixo do que poderia ser, a história da investigadora particular que não queria ser heroína reencontra um caminho bastante interessante — para ela e para sua irmã, Trish Walker
SPOILER! Como fã e leitor de gibis, as duas temporadas desastrosas da série do Punho de Ferro estão longe de ser a minha maior decepção no universo Marvel criado dentro do Netflix. Este posto pouco honroso fica com a segunda temporada de Jessica Jones. Porque, vamos lá, os primeiros episódios da jornada do Danny Rand já indicavam que não dava MESMO pra esperar nada dali.
Só que no caso da Jessica, pô, estamos falando de uma primeira temporada simplesmente MARAVILHOSA, de longe a minha favorita de todos os momentos da Casa das Ideias dentro do serviço de streaming (sim, isso inclui deixar a ótima terceira temporada do Demolidor, por exemplo, num segundo lugar sem qualquer crise de consciência).
Aí que chega a segunda temporada e, putz, a mãe da Jessica é simplesmente jogada na trama de um jeito desastrado e exagerado, que não combina com uma série que, desde o episódio 1, nunca foi SOBRE super-heróis. E o que dizer, então, da Trish, que se tornou a criatura mais insuportável da face da Terra? De bom mesmo, só o desenvolvimento da ambiciosa advogada Jeri Hogarth, que Carrie-Anne Moss desempenhou com inteligência ímpar ao equilibrar fragilidade por conta da ALS e boas doses de canalhice por causa de sua ambição desenfreada. Amar ou odiar esta mulher? Não dava pra saber muito bem.
Minha única certeza, ao final dos 13 episódios, é que eu tinha ODIADO o segundo ano daquela série que era a minha predileta da dobradinha Marvel/Netflix. Depois de tamanho desapontamento, como encarar uma terceira temporada, que não apenas encerraria de vez a série, mas também seria a tampa no caixão da parceria, dando fim (ainda que, segundo alguns insistam em acreditar, temporário) a este universo compartilhado de heróis da Cozinha do Inferno?
Bom, segui em frente, como bom teimoso que sou, e tive uma surpresa das mais gratas. Não é uma temporada perfeita? Sem dúvidas que não. Talvez pudesse, como boa parte de suas coirmãs, ser mais curta, resolvendo tudo tranquilamente em uns 8 ou no máximo 10 episódios? Ah, isso sim, tem uma barriguinha aqui e outra ali na narrativa.
Mas nada que abale uma trama mais enxuta, focada e que volta a conversar diretamente com o cerne da personagem dos gibis de Brian Michael Bendis, com o que a torna única dentro de um universo de superpoderosos multicoloridos. Uma mulher lutando contra as próprias imperfeições enquanto bisbilhota a vida de um bando de poderosos aparentemente perfeitos.
Jessica Jones, a série, desta vez resolveu se focar na Jessica Jones investigadora — e foi aí que retomou o diálogo com a Alias de Bendis. Mas foi além, porque fez a Jess usar as suas habilidades detetivescas em uma história na qual se torna um elemento estranho, com uma nova super-heroína surgindo no pedaço pra fazer Miss Jones em pessoa mais uma vez se questionar, entre doses cavalares de uísque, sobre as responsabilidades que recaem nas costas de quem tem os tais dos superpoderes.
E esta nova super-heroína, no caso, é sua própria irmã.
Depois de ter se submetido a um tratamento experimental quase fatal na temporada anterior, finalmente Trish Walker começa a manifestar os poderes com os quais tanto sonhou. Agilidade sobre-humana, velocidade, capacidade de enxergar no escuro... tudo tornando-a quase como a sua contraparte das HQs, a Felina.
Trish sempre teve uma ponta de inveja das habilidades especiais da irmã adotiva e do quanto ela estava nem aí pra tudo aquilo, o quanto só queria ser normal. Trish sempre quis ser a melhor, ser única, ser especial. Primeiro na TV, depois nas manchetes dos jornais e agora como a novata combatente do crime mascarada. Mas o quanto este QUERER, este desejo por ser heroína, a fazia estar pronta de verdade para o papel, para as sutilezas, para a linha fina entre o bem e o mal, para não cruzar a fronteira entre ajudar as pessoas e se tornar um misto de júri, juiz e executor? Trish treina, Trish tem disciplina, mas talvez falte à Trish uma coisa que Jessica tem de sobra e por muitas vezes a postura cínica nos faz esquecer: coração.
Pronto, foco aí. Sem precisar de subtramas que desviassem muito disso. Não apenas os desdobramentos da vida da manipuladora Jeri, sempre entre ser heroína e vilã, mas também os bastidores da vida cheia de diferentes matizes de Dorothy (a mãe de Trish e Jessica) e a nova carreira do vizinho Malcolm — tudo tem um tema central único e cada acontecimento contribui diretamente para o que rola entre Jessica Jones e Trish Walker. Até mesmo a existência de Erik, o camarada que sente uma dor de cabeça terrível quando está perto de alguém com alto potencial de maldade, só existe para ajudar na história, para mostrar quem Jessica pode ser e o que Trish pode se tornar.
Se o tema da temporada 1 foi claramente ABUSO, o desta segunda é nitidamente RESPONSABILIDADE, no maior esquemão Tio Ben da vida. Faz sentido que a série que encerra o combo Marvel / Netflix seja, de fato, um enorme questionamento sobre o que é ser herói, vindo justamente de alguém que não quer saber de uniformes ou identidades secretas. Um questionamento total e completamente humano, aliás, quase como se fosse a gente lá, no meio daquela história. Dizer “somos todos Jessica Jones”, olha, ganha um contexto bem diferente aqui, na melhor tradição Marvel.
Por isso mesmo, também faz sentido que o interessante e odioso antagonista da temporada seja um ser humano. Nada de poderes especiais. Gregory Salinger, o segundo Foolkiller dos gibis, é um assassino frio e calculista, cheio de métodos, com uma inteligência acima da média, que considera seres superpoderosos como trapaceiros. Eles não se desenvolvem ao máximo enquanto outros humanos, mediante muito treinamento: na real, eles recebem um card especial depois de um acidente bizarro, pura sorte, e lá estão eles pulando, voando, levantando prédios. São apenas criaturas medíocres que escondem uma verdade e que merece ser EXPOSTA.
Greg está ali para ajudar a dar o clique na Trish. E opor ambas, ela e Trish, na real, é uma sacada de mestre.
Quanto Jessica Jones chega ao fim, sim, deixa abertas umas portas aí, como era de esperar. Uma ligação dos assistentes de Jeri para as Empresas Rand, na qual se descobre que Danny está numa viagem especial, cria conexão direta com o final da segunda temporada do Punho. E a aparição de Luke Cage no último episódio, de terno, todo estiloso, naquela pegada quase mafioso/gângster, se liga diretamente à excelente oportunidade que a segunda temporada do homem de pele impenetrável deixou. “Se algo acontecer, preciso saber que teria alguém pra me deter”. Sacou o recado? A treta maravilhosa que poderia surgir a partir daí?
Mas, ainda assim, caso em nenhum momento estas séries sejam retomadas pela Marvel noutra casa, quando Jessica escuta uma voz familiar em sua cabeça e percebe que pode, sim, não apenas ignorá-la mas evitar fugir e deixar tudo para trás mais uma vez, temos uma boa amarração aqui. Que pode ser um bom final pra ela e também para os seus amiguinhos. Aquele cantinho especial de Nova York continua em boas mãos, ainda que a gente não esteja vendo o que tá rolando por lá.
Até a próxima, Cozinha do Inferno. Quando (e se) diabos ela for mesmo rolar.