Depois de inúmeras tentativas de levar o principal e mais cultuado título adulto da DC Comics para os cinemas, parece que agora a coisa vai caminhar definitivamente sob a tutela (e carteira, é bom ressaltar) do gigante do streaming
Pra um cara que presenciou in loco discussões acaloradas entre fãs que, de um lado, defendiam que uma adaptação de Sandman para os cinemas deveria ser estrelada por Johnny Depp e Winona Ryder como Morpheus e a Morte (além de preferencialmente com direção de Tim Burton), enquanto do outro tinham aqueles que pregavam que a dupla principal tinha que ser interpretada pelos músicos Robert Smith (The Cure) e Siouxsie Sioux, chega a parecer quase surreal ter pela primeira vez uma confirmação OFICIAL de que a cultuada série de Neil Gaiman vai ganhar as telas. Ainda que não sejam telonas, mas sim telinhas.
Concretizando uma negociação que, nos bastidores, diz-se que foi o contrato mais caro para uma série que a DC Entertainment já fez NA VIDA, a Warner Bros. Television vai desenvolver para o Netflix uma temporada live-action de 11 episódios do maior hit do selo adulto Vertigo, a história onírica e cheia de sutilezas que alavancou a carreira do escritor inglês ao mainstream — o mesmo Gaiman que, curiosamente, teve duas obras de literatura vertidas para este formato recentemente: Deuses Americanos e Belas Maldições (Good Omens).
Gaiman será produtor executivo e integrará o time de roteiristas, função dupla igualmente desempenhada por David S.Goyer — ele mesmo, o homem igualmente responsável por Batman Begins, O Cavaleiro das Trevas e, sim, que rufem os tambores, Batman vs Superman (junte-se a nós no AFE coletivo). O showrunner será Allan Heinberg, que nos gibis foi criador dos Jovens Vingadores mas nos cinemas ficou mais conhecido pelo roteiro do filme da Mulher-Maravilha. O trio deve coescrever juntinho o roteiro do primeiro episódio da série.
“Estamos empolgados por esta parceria com um time tão brilhante quanto este formado por Neil Gaiman, David S. Goyer e Allan Heinberg para poder finalmente trazer a HQ icônica de Neil, The Sandman, à vida nas telas”, afirmou Channing Dungey, VP de séries originais do Netflix, em comunicado oficial. “De seus personagens e histórias riquíssimos aos mundos intrincadamente construídos, estamos empolgadíssimos para criar uma série original épica que mergulhe profundamente no universo cheio de camadas que os fãs de todo o mundo tanto amam”.
Esta está beeeeem longe de ser a primeira das muitas tentativas de trazer a mitologia moderna e a fantasia sombria do Mestre dos Sonhos e seus irmãos, os Perpétuos (Destino, Morte, Destruição, Desejo, Desespero e Delírio), para algum lugar fora dos quadrinhos, em especial o cinema. Publicada com sucesso entre janeiro de 1989 e março de 1996, a série original de gibis — que depois ganhou uma bela dezena de variações — é considerada uma obra-prima moderna, vencedora de diversos prêmios e trazendo elogios até mesmo de quem considerava até o momento os quadrinhos como uma arte “menor”. Era inevitável, portanto, que a DC tentasse capitalizar em cima deste sucesso em algum momento.
Tudo começou láááááá na primeira metade dos anos 1990, quando Roger Avery, roteirista de Pulp Fiction, foi chamado pela WB para dirigir uma primeira tentativa – e a ideia dele era ficar próximo do material original, mesclando os arcos Prelúdios e Noturnos e A Casa de Bonecas. Só que ele se desentendeu com o produtor John Peters, aquele mesmo dos quatro primeiros filmes do Batman e responsável pelo finado Superman Lives com Nicolas Cage. Anos depois, o roteiro proposto por Peters caiu na internet e Gaiman o classificou como “facilmente o pior script que eu já li”.
Muitas e idas e vindas depois, Diane Nelson, a presidente da DC Entertainment trouxe a ideia de volta do limbo em busca de uma nova franquia de requinte. Mas ali ela já pensava no potencial de uma série de TV, com uma proposta inicial do diretor James Mangold (Logan) pra HBO, contando até com a nobre consultoria do próprio Neil Gaiman. Só que a divisão de TV da Warner se meteu no meio e acabou licenciando os direitos da franquia para Eric Kripke, o criador de Supernatural.
Foi só em 2013 que tivemos novas notícias a respeito do Sonhar, quando Goyer cantou aos quatro cantos que levaria Sandman ao cinemas junto com o ator Joseph Gordon-Levitt (que seria diretor e protagonista, segundo rumores) e o próprio Gaiman. A WB então repassaria todas as adaptações Vertigo para a subsidiária New Line, recém-reincorporada, aquela mesma responsável por um sucessinho de nome Senhor dos Anéis. “Há alguns meses, eu percebi que os caras na New Line e eu não nos entendemos sobre aquilo que faz o Sandman ser especial, e sobre como uma adaptação para os cinemas pode/deve ser”, diria Levitt em 2016, ao anunciar que estava saindo do projeto por causa de quem? Elas mesmas, as diferenças criativas.
Diz-se que um dos principais motivos para a saída foi a substituição de Jack Thorne (Skins) por Eric Heisserer (Premonição 5 e o remake de A Hora do Pesadelo) para o cargo de roteirista. “Pra mim, o que é importante são 2.500 páginas de Sandman, e não um filme que pode ou não acontecer”, chegou a dizer Gaiman, defendendo o ator/produtor/diretor que abandonou o barco. Ele inclusive relembrou algo que tinha dito quase uma década antes, numa San Diego Comic-Con: “prefiro não ver nenhum filme do Sandman do que ver um filme ruim do Sandman”.
Mas em novembro de 2016, Heisserer também anunciou que estava picando a mula. “Eu cheguei à conclusão de que a melhor versão desta propriedade seria como uma série da HBO ou então uma minissérie, não como um filme, ainda que fosse uma trilogia”, afirmou o roteirista, praticamente prevendo o futuro, numa entrevista pro iO9. “A estrutura de um filme realmente não funciona aqui. Então eu voltei e disse pra eles ‘toma, tá aqui todo o trabalho que eu fiz, isso não é o que deveria ser, isso precisa ir pra TV'”. E aí foi. ;)
Curiosamente, além de não ter ido parar na HBO, que é uma empresa do mesmo grupo que a Warner (muito provavelmente pelo preço, de acordo com o que apostam especialistas), Sandman nem chegou a ser cogitado para o serviço de streaming DC Universe, como aconteceu com outros egressos de sucessos da Vertigo como Patrulha do Destino e Monstro do Pântano. O valor de produção aqui, definitivamente, é outro, para custear cenários e uma produção de arte megalomaníaca (as muitas histórias de pessoas afetadas por Morpheus ao longo de sua errática existência vão da Renascença ao Japão Medieval, passando pela Londres moderna e pelos corredores do próprio inferno) e também efeitos especiais de cair o queixo (o visual deslumbrante dos gibis, em especial nas dimensões fora da consciência humana, é parte importante do espetáculo).
Maaaaaaaaaaaaaaaaas igualmente curioso é que Sandman esteja vindo parar no mesmo streamer que uma outra série que o Netflix ajudou a salvar: Lucifer. Personagem surgido originalmente nas páginas da obra de Gaiman, o diabão logo se tornaria uma das muitas séries derivadas da original — mas o resultado da série de TV não poderia, de fato, ser mais diferente daquele que se vê nas páginas dos quadrinhos. Bem divertido, fato. Mas MUITO diferente. O suficiente pra gente cravar que ambas não vão MESMO se passar num mesmo universo. Aliás, nem em sonhos (entendeu o que eu fiz aqui?).
Se Gaiman e Heinberg conseguirem evitar que Goyer escreva outro daqueles memoráveis momentos MARTHAAAAA, digamos que a gente já tá saindo bem no lucro.