Documentário mostra que Satanismo significa apenas "não me faça engolir a SUA religião" | JUDAO.com.br

Filme dirigido por Penny Lane (SIM!) mostra a jornada do chamado Templo Satânico em busca da liberdade religiosa nos EUA — ainda que isso signifique, vejam só, não ter religião nenhuma regendo a sua vida

Entre o final da década de 1970 e o começo de 1990, a mídia dos EUA foi acometida por um fenômeno que muitos especialistas em comunicação chamaram de “Pânico Satânico”. Basicamente, criou-se, na figura dos chamados satanistas (popularizados principalmente pelos escritos e pela atuação de Anton LaVey desde a década de 1960), a origem de todo o mal. Para qualquer coisa. Mataram uma criança? Foram os satanistas. Estupraram uma mulher? Certeza que foram os satanistas, obviamente influenciados por forças ocultas. Direta ou indiretamente, o oculto, o sobrenatural, os rituais macabros, toda aquela coisa imagética que conhecemos dos filmes virou desculpa pra qualquer coisa que um cidadão de bem temente ao todo-poderoso Jesus Cristo nas alturas jamais faria.

Rolava até um papo de uma conspiração que incluía alguns dos homens mais ricos do mundo, buscando crianças como objetos de sacrifício em nome de Lúcifer para manter uma extensa e suja rede de pornografia e prostituição.

Agora... traz este papo todo pra 2019. Mantenha os “cidadãos de bem” e seu fervor pela religião cristã tradicional mas troca Estados Unidos, por exemplo, sei lá, vai, por “Brasil”. Só um teste aqui. Aí troca os “satanistas” por “comunistas”. É, agora coloca aí umas doses a mais de paranoia, de Foro de São Paulo, de terraplanismo e revisionismo histórico. Olha só, temos uma combinação igualmente assustadora e totalmente contemporânea, não é mesmo?

Justamente por isso, pode não parecer, mas o documentário Hail Satan?, obra da celebrada cineasta independente Penny Lane (SIM!) a respeito das origens e do posicionamento do grupo conhecido como Satanic Temple, tem muito mais relação com a nossa realidade atual do que gostaríamos. Mas pode servir de lição pra muita gente sobre como prosseguir daqui pra frente, se posicionando e dizendo NÃO.

Sim, sim, importante deixar clara uma parada aqui. Apesar do nome, o Satanic Temple não é exatamente um grupo religioso, ainda que usufrua desta denominação justamente para poder estar devidamente subsidiada em suas atividades de resistência. Na verdade, eles estão mais para uma organização de ativistas políticos, isso sim.

Esquece este papo de rituais, sacrifícios com sangue, virgens, criancinhas, bodes, a fonte de todo o mal, ainda que a gente saiba o quanto a palavra “satanismo” pode soar assustadora pra quem foi criado nesta tradição judaico-cristã. Os integrantes da doutrina não acreditam no demônio, mas sim no Satanás enquanto figura de rebeldia, enquanto alguém que se levantou diante do líder inconteste e opressor e disse “hey, comigo não, cara”.

Os integrantes do Satanic Temple lutam, principalmente, por um Estado Laico. Pela separação entre religião e política. Pelo direito inviolável à liberdade de expressão, pela igualdade racial e de gêneros, a favor da legalização do aborto e, sim, com foco nos avanços científicos em primeiríssimo lugar e acima de qualquer conversa ou discussão (ou seja: vacinem seus filhos SIM, porra).

Então... Mas neste caso, já que eles não CULTUAM de fato uma entidade que guiaria suas ações, a palavra correta não seria “ateu”? Por que eles não se descrevem desta forma? “Porque não teria a mesma graça”, responde um dos membros do grupo, ao longo do divertido documentário, resolvendo a questão de maneira bastante simples. Mais do que serem pessoas atuando de maneira esparsa, eles criaram uma simbologia única e um conjunto de sete princípios (com foco em compaixão, justiça, liberdade) que faz mais sentido para qualquer sociedade do que uma lista de mandamentos.

O foco do Satanic Temple, representado por seu principal líder e porta-voz, Lucien Greaves (nome fictício, coisa que todos eles fazem questão de ter), é fazer uma série de atividades, sejam elas manifestações quase teatrais — como vestirem-se de bebês com máscaras um tanto deformadas para “contra-atacar” os religiosos com faixas na frente das clínicas de aborto — ou então ações de cunho mais jurídico (como entrar com uma ação pedindo direito de fazer suas declarações “religiosas” no início da sessão da câmara dos vereadores de uma determinada cidade, apenas porque era isso que os católicos faziam), que mostrem claramente que, não, não é certo fazer com que a gente seja forçado a engolir a religião de outro grupo de pessoas.

Mais do que “ganhar”, o que eles querem é fazer o outro lado perder. Mais do que ter a chance de falar sobre Satã na frente dos vereadores, eles queriam é que rezar antes de começar a discutir o futuro da cidade não fosse uma exigência. Rezar é pra fazer na Igreja. Ali o papo é outro. Isso não é, conforme muita gente se apressou a dizer, ser “controverso” ou “polêmico”. É só ser LAICO. É só lutar usando as mesmas “regras” do outro lado, é só tentar desconstruir estas merdas todas pelo lado de dentro. Se a sua religião pode, bom, a minha também, né?

E este lado a documentarista mostra com precisão cirúrgica e sem perder o bom humor. O Satanic Temple não é uma instituição milionária, então eles vão se virando como dá, com estações de trabalho apertadas entre caixas de papelão e souvenires como camisetas e bottons personalizados vendidos para ajudar a custear as operações. Sim, o Satanic Temple cresceu e espalhou pela Terra do Tio Sam e, bem, até mesmo pelo mundo, ganhando capítulos que os forçaram inclusive a criar uma espécie de administração central para ter um mínimo de organização. Mas, no fundo, eles ainda são só um pequeno grupo de ~malucos tentando fazer a diferença. Provocando do jeito que dá.

Grande parte da história do filme gira em torno do caso que os tornou famosos de fato, envolvendo a tal estátua gigante de Baphomet (um bode humanoide com duas asas e pentagrama na testa), custeada via financiamento coletivo e esculpida para ser colocada na frente do capitólio do estado de Oklahoma. O objetivo? Ter o mesmo destaque que um certo monumento em homenagem aos Dez Mandamentos, instalado no mesmo lugar, em 2012, por Mike Ritze, membro da câmara de representantes do estado. E quando integrantes e simpatizantes do Templo Satânico se reúnem para o que seria a inauguração de seu monumento, o que começa como uma sequência divertida, repleta de pessoas de preto, maquiadas, chifres postiços, camisetas de bandas de rock, vai se tornando algo pelo qual você TORCE de verdade, trocando o “haha” pelo “yeah!”. Porque você percebe que, sim, aquela é MESMO a coisa certa a se fazer.

Sim, tudo bem, a cineasta já deixou claro que DELIBERADAMENTE deixou de lado não apenas o conflito Satanic Temple x Church of Satan (fundada por LaVey e que insiste que o “verdadeiro” satanismo deve ser “apolítico”), como também os conflitos internos da organização — que é natural que ocorram, gente que quer fazer de um jeito, de outro, enfim. Quando muito, vemos a representante de um capítulo que, se apresentando numa pegada mais feminista punk, endurece o discurso em algumas aparições públicas e prefere o enfrentamento e o choque (com manifestações artísticas que carregam mais no sangue falso e nas referências sexuais) do que a tática de “desmontar pelo lado de dentro”, causando um impacto e um eventual afastamento do grupo.

Não que eu, de verdade, discorde DELA, pra ser bem honesto. Mas dá pra entender claramente onde rolou a desconexão entre as duas estratégias.

De qualquer maneira, é bastante compreensível o recorte narrativo de Lane, que preferiu focar no fato de que, em plena onda de conservadorismo que varre os EUA e o mundo, um bando de tatuados, cabeludos, cabelos coloridos, punks, metaleiros, gays, lésbicas, “desajustados” de todas as partes, pessoas que não se encaixavam e não são aceitas até hoje dentro de um livro de regras religiosas que ameaça se tornar mais importante do que a Constituição, encontraram um caminho. Um lugar comum. Um espaço para serem eles mesmos e poderem celebrar a liberdade.

No fim, o ponto de interrogação do título do filme é mais um questionamento do tipo “pera, eles não estão REALMENTE saudando Satanás?”. Fato. Mas se o tal do cara lá debaixo for tão bacana quanto parte desta galera falando em seu nome aqui em cima, ele que conte comigo pra tudo.