Deixe O Iluminado no seu devido lugar e aproveite uma sequência que abraça o universo cinematográfico de Kubrick, mas ainda adiciona a complexa questão familiar escrita por King nos livros
Reconhecidamente, O Iluminado é um marco do cinema para o público e para a indústria cinematográfica. Para Robert Eggers, diretor de O Farol e A Bruxa, por exemplo, o filme é o primeiro passo para um novo diretor que quer entender como funciona a criação do clima de tensão e antecipação de histórias de terror/suspense.
O Iluminado, porém, nunca foi visto com bons olhos pelo autor Stephen King, sempre bastante verbal sobre o que acha da adaptação de Stanley Kubrick, principalmente porque o diretor reconhecidamente perfeccionista se afastou consideravelmente da temática que o autor queria transmitir originalmente – importante lembrar que os finais dos materiais não são iguais e até passam mensagens diferentes. “Um horror sobrenatural feito por alguém que não acredita no sobrenatural”, descreveu King certa vez. E o pior é que faz bastante sentido.
Quando Stephen King lançou a sequência Doutor Sono, em 2013, sabíamos que era uma questão de tempo para o livro ir parar nos cinemas, já que o audiovisual acaba sendo o destino de praticamente tudo que o autor escreve. Mas essa adaptação em particular tinha a difícil missão de manter a ligação com o filme de Kubrick e ainda assim respeitar o material original para agradar o escritor do Maine. Demorou, mas Mike Flanagan, um dos melhores cineastas de terror da sua geração, conseguiu convencer King que seu livro merecia uma adaptação que ainda abraçasse elementos importantes e emblemáticos do filme do Kubrick.
A história se passa três décadas depois que um pequeno Danny Torrance (Ewan McGregor) e sua mãe, Wendy (Alex Essoe), conseguiram escapar com vida do aterrorizante Hotel Overlook após o enlouquecimento de Jack, seu pai. Crescendo com óbvios traumas e constantemente lidando com poderes conhecidos como “brilho”, Danny tem problemas com o álcool exatamente como o pai. Ao se cansar da vida que leva, ele muda para uma pequena cidade, entra em um grupo de ajuda e começa a trabalhar em um hospital, onde lida com idosos terminais próximos da morte.
Nesse meio tempo, Danny começa a se comunicar telepaticamente com uma jovem garota chamada Abra (Kyliegh Curran), que tem um “brilho” ainda maior que o seu. Com Danny sendo uma espécie de mentor espiritual, a garota decide buscar sua ajuda depois de descobrir que um estranho grupo de pessoas tem a capacidade de se alimentar do “brilho” de outras crianças. Quando Abra é descoberta, se torna alvo desse grupo comandado por Rose the Hat (Rebecca Ferguson) e precisará da ajuda de Danny para enfrentá-los.
Diferente do clima de terror e antecipação tão marcante do filme de 1980, Doutor Sono é menos apavorante e assustador, mas não é ruim. Flanagan abraça uma história mais contemplativa e humana sobre o peso dos traumas infantis nos adultos, saúde mental e, principalmente, da dependência química. O grande vilão dessa adaptação não é uma estrutura física mal assombrada, mas um grupo de pessoas muito antigas que se alimentam do “brilho” de crianças inocentes.
Com o roteiro escrito pelo próprio diretor, Flanagan soube utilizar lindamente os principais elementos do primeiro filme e abraçar o universo cinematográfico de Kubrick, mas ainda adiciona a complexa questão familiar escrita por King nos livros. Se, pela visão do autor, esse elemento estava em falta no filme de Kubrick, Doutor Sono desenvolve sua narrativa inteiramente nessa ligação entre família e passado. Após passar a vida inteira literalmente colocando sua existência em pequenas caixas e ignorando cada uma delas, Danny precisa compreender como as escolhas do seu pai o influenciaram – se você viu A Maldição da Residência Hill, você sabe do que estou falando.
Flanagan e McGregor criaram camadas emocionais complexas de angústia, mágoa, arrependimento e vício que dão ao personagem a profundidade que merece pelo passado que tem. Mesmo com todas suas fragilidades, Danny ainda tem a dedicação necessária para se tornar o herói que Abra precisa. Flanagan teve uma ótima sacada ao conectar o final de O Iluminado de Kubrick e o final que King acreditava ser o correto, quase como uma conciliação das duas visões dessa história.
Doutor Sono está constantemente adicionando autorreferências que vão fazer o fã de O Iluminado sorrir na sala de cinema, como pistas musicais e uma estética muito reconhecível – repare que a paleta de cores do quarto de Abra lembra muito as cores do hotel -, mas Flanagan também se preocupa em dar sua própria linguagem com uma assinatura de câmera que é essencialmente dele.
Se apropriando dos pesadelos inesquecíveis criados no filme de 1980, o cineasta pôde se aprofundar em uma história mais dramática do que aterrorizante. Não espere algo como O Iluminado, mas espere uma continuação que soube respeitar as ideias de Kubrick e o universo criado por King.