Depois de um álbum de estreia que já dá pra posicionar facilmente entre os mais importantes do rap nacional em muito tempo, o músico paulistano cria pontes entre os bailes de muitas quebradas e retorna equilibrando a força do seu discurso com o movimento dos seus quadris — porque, afinal, se o povo não ginga é ditadura
“Numa lista que tem uma quantidade considerável de discos de metal, é absolutamente representativo que eu te diga que talvez este seja o álbum mais soco no estômago do ano”. Esta frase eu mesmo escrevi, dois anos atrás, na nossa lista de grandes discos de 2017, falando sobre o maravilhoso Galanga Livre, a patada que serviu como primeiro álbum de Danilo Albert Ambrosio, mais conhecido pelo alter-ego de Rincon Sapiência, músico que já tava por aí há muito tempo, em diferentes projetos e parcerias.
Não apenas um dos melhores discos nacionais do ano, o rapper entregou um capítulo crucial na história do gênero no país — o verso livre Ponta de Lança é uma metralhadora, enquanto aquele vídeo de Crime Bárbaro, cara...
Totalmente independente, por conta própria, Rincon volta agora com seu segundo disco, assumindo e respirando o OUTRO alter-ego pelo qual sempre foi conhecido na cena. E Manicongo apresenta a costura colorida e dançante que é seu mundo, interconectado com pontes entre os ritmos que fazem a cabeça e sacodem a raba e os quadris de muitos guetos por aí. Sim, Rincon mantém em Mundo Manicongo: Dramas, Danças e Afroreps, o seu flow riquíssimo igualmente direto e reto, sem frescuras. Mas aqui ele defende, no macro, a tese de que pra denunciar, pra resistir, pra enfrentar, também é preciso erguer a porra da cabeça e ser feliz. Num certo ponto, o álbum conversa tematicamente com o novo do Emicida, por exemplo, ao cravar que você arrebenta quem quer te pisotear quando libera a endorfina e deixa o seu corpo dançar, esfregando tesão na cara deste bando de escrotos.
“A quebrada tem voz e não cala, né?”, diz Rincon/Manicongo ao longo de uma bolacha que dá voz e som pra muitas quebradas. É um álbum com batucada, que conversa com o afrohouse, que dá espaço pro pop africano e suas batidas ao mesmo tempo eletrônicas e tribais, parte fundamental da nossa história, mas também é um álbum que se permite viajar pra Bahia, com pagode e axé, que pega o avião de volta pro Rio de Janeiro e desemboca no mais raiz dos bailes funk. É rap com suingue, com um groove lindo, que deixa claro: ou você dança ou você DANÇA. Sacou?
A pegada já clara na contagiante faixa de abertura, não por acaso batizada de Mundo Manicongo, uma espécie de manifesto do que vem pela frente. “Tou fazendo batucada da minha maneira / Tou metendo dança da minha maneira”, canta Rincon, com tambores e atabaques do candomblé eletrificados e modernizados, que são, como ele mesmo explica, uma conexão com os ancestrais incluindo “um pouco de pimenta”. O resultado é psicodelia pura, lisérgico, sem aquele necessário tom mais cinzento dos discos de rap tradicionais, igualmente urbano mas mostrando a cidade sob um ponto de vista diferente.
Claro que, quando coloca o berimbau pra dar o tom em Real Oficial, o músico faz questão de te lembrar aí que sabe bem qual é a realidade do negro no Brasil. Aqui o papo não é dançar pra fingir que nada acontece, que tá tudo bem, mundinho cor de rosa, pôneis e arco-íris. Mas sim dançar pra mostrar que os caras lá de cima não dobram quem tá embaixo. Pra quem tem a rua como combustível, pedir passagem pra entrar no Mundo Manicongo é também embarcar num “mundo real sem efeito especial”.
Dito isso, é uma delícia ver a viagem a qual Rincon nos conduz, exercendo o dom da tiração de onda em Sensação, com uma sonoridade praiana, sexy, que flerta maravilhosamente com o tecnobrega/tecnoelody paraense, sintetizador maroto, aquele forró eletrônico que o roqueiro finge que não, mas tá querendo dançar porque não consegue resistir. Já em Meu Ritmo, ele cruza uma fronteira que sempre foi uma espécie de área cinzenta, sobe o morro carioca e deixa claro que o funk é sim irmão do rap, para o bem e para o mal, nas tretas e preconceitos sofridos, no apelo de quem vive sob a lupa das elites. A parada aqui é funkão raiz, “pegada funk tipo Guimê”, mas com batucada, “o meu tambor vem da Guiné”. O resultado? “Sente o batidão, tenho gratidão / Benção nossa mãe Dona África”.
E é meio nesta pegada, só que flertando com o furioso paredão sonoro soteropolitano, que o músico nos entrega talvez uma das canções mais delícia do ano, sem exagero. Arrastão é uma muralha, parceria com os baianos do Àttooxxá, coletivo que resignifica o pagode vindo do Nordeste e que explodiu no último Carnaval com Elas Gostam (Popa da Bunda). A força do grave, do baixo, é tão intensa e maravilhosa, que no exato momento em que estou escrevendo isso quero ouvir a música DE NOVO só pra sentir a vibração. Junte a isso a frase mágica “favelado não é animal” mas é hora de fazer “arrastão contra o rei do gado”, bingo. Para bom entendedor, meia sacolejada já basta, rapá.
Pra fechar, o combo Me Nota, com participação do Rael, e Lábios de Mel, com a voz do Gaab, falam sobre amor, flerte, pegação. Porque a pista de dança é pra gente se soltar e também pra gente se pegar, né? Quem quiser, quando quiser, basta todo mundo estar de acordo e a fim. Quem é você, por mais títulos ou gravatas que tenha, pra dizer quem ou quando eu pego mesmo? Alguém que “me adora com a mesma força que me ignora”? ;)
O Mundo Manicongo é foda. É este lugar de resistência, luta, liberdade. Basta só apertar o play. “Eu vou pro baile rebolar porque eu mereço”, diz uma das canções do álbum que podia ser rap, funk, pagode, arrocha. Foda-se. Rebola mesmo e foda-se. Porque, afinal, se o povo não ginga é ditadura. E essa aí não tem mais vez, parça.