Atravessando a tempestade | JUDAO.com.br

As pessoas acham que House of Cards é uma série sobre política. Não é. Ela é uma série sobre poder. Uma série sobre política é Battlestar Galactica.

A ficção científica é essa coisa que precisa, para cumprir seu papel, ser um retrato dos nossos dias.

Ela pode ser um olhar sobre como as pessoas de hoje vão evoluir diante do avanço tecnológico – seremos monstros ou anjos? – pode ser um ensaio filosófico sobre conceitos inimagináveis e o que eles podem significar para nossa percepção da realidade (vide Matrix, ou o recente e excelente Devs) e pode também ser exatamente uma parábola sobre nosso próprio tempo presente, extrapolando conceitos comuns a nós, como guerra, dever, liderança, só que através de analogias às vezes bem fáceis de decifrar.

Uns anos atrás, eu fui convidado a dar uma palestra sobre o finado seriado House of Cards, falando sobre linguagem cinematográfica, temática e depravação. A abertura da palestra foi algo como “as pessoas acham que House of Cards é uma série sobre política. Não é. Ela é uma série sobre poder. Uma série sobre política é Battlestar Galactica”. E com a recente inclusão desta última no serviço de streaming da Amazon, porque não revisitar essa série de sci-fi que ousou em tantas frentes?

Imagine que num futuro muito distante conseguimos colonizar as estrelas. A população humana inteira, agora com trilhões de indivíduos, vive em 12 colônias num sistema solar distante. Anos antes houve uma guerra contra robôs assassinos – uma inteligência artificial que evoluiu demais e se voltou contra seus criadores, os Cylons – mas essa guerra foi vencida. Tudo está bem. Só que os robôs voltaram, conseguindo se disfarçar de humanos e se infiltrando no meio das pessoas.

Com um golpe certeiro, os Cylons atacam todas as colônias simultaneamente, varrendo a vida humana do universo. Só restam 50 mil pessoas vivas – e somente um encouraçado espacial, prestes a ser descomissionado, sobrou para liderar essa migalha de humanidade em direção ao lendário planeta Terra, possível origem da vida humana, enquanto, é claro, os Cylons perseguem-nos implacavelmente.

Ronald D. Moore, roteirista das novas gerações de Star Trek, apareceu um dia querendo revitalizar o antigo seriado de 1978, que só teve 21 episódios e nem estava na memória de muita gente. Só que queria fazer uma reformulação completa, inserindo doses extremas de tensão, crítica e um ainda polêmico teor espiritual. O resultado foram as quatro temporadas da série que marcaram profundamente os primeiros anos da nova era nas telinhas, sempre com uma discussão política que queria falar de coisas muito mais significativas do que somente “direita vs esquerda”.

A liderança da frota de humanos é do Comandante William Adama, um militar da velha guarda, turrão e estratégico, papel do brilhante Edward James Olmos. Porém, o governo democrático, com a presidência das colônias humanas e quase todo o estado maior tendo sido dizimado, reside na ex-ministra da educação Laura Roslin, interpretada por Mary McDonnell com muita sutileza, mas não menos paixão.

Logo no começo é ela quem precisa tirar da cabeça dura de Adama a ideia de retaliar contra uma frota que matou trilhões, já demonstrando que um dos principais conflitos de ideias da série é no campo do “autoritarismo vs libertarianismo”. Passo a passo, tréguas são formadas, brigas são travadas, decisões, traições e reviravoltas são orquestradas por um punhado de pessoas que têm, com toda a honestidade que só um apocalipse pode gerar, o bem da humanidade em mente. De crise em crise, vamos conhecendo os personagens. Tanto os humanos, que têm os traumas, as culpas e os delírios de uma situação dessa, como os próprios Cylons. Personificados em seres humanos, âs vezes sem nem saber o que são realmente, a série continuou o diálogo da ficção científica com a definição de humanidade, que foi originado lá atrás com Mary Shelley.

Mas é como um espelho da era Bush que Battlestar Galactica realmente se destaca. O primeiro dia do século 21 foi, como todos sabem, 11 de setembro de 2001. A cultura, a economia, a política e a sociedade como um todo se transformaram com o ataque ao World Trade Center, e é muito louco pensar que pessoas com idade pra dirigir nasceram já no planeta que a queda das Torres Gêmeas em NY gerou. A série foi a primeira das grandes análises da cultura pop sobre este mundo novo, onde os personagens travavam uma guerra incessante contra o medo, contra a paranoia, contra um inimigo infiltrado.

Foi uma das primeiras grandes séries a questionar a ética e a efetividade de práticas como a tortura, aplaudida por tanta gente decente, cristã e correta. Chegou ao limite de colocar os heróis como homens bomba no meio de um ambiente de completa opressão. E é insano que enquanto as pessoas viam, nos canais de notícia, cenas da guerra do Afeganistão, ao mesmo tempo em que descobriam as reais razões da guerra, aqui elas assistiam a uma crônica bastante profunda sobre os mesmos temas, mas sem nunca ter uma resposta fácil. Porque diferente do aspecto “eles estão infiltrados” mais clássico, de muito da ficção da era da Guerra Fria, aqui temos uma vertente também de “entender o outro lado”. De ver que, no fundo, os Cylons podem não ser tão diferente dos humanos. Talvez sejam semelhantes demais...

Os roteiros dos episódios são esbeltos, praticamente sem gordura, com reviravoltas conscientes e alucinantes. Mas a insistência, dizem, do próprio Ronald D. Moore, de ter uma vertente sobrenatural e proto-cristã enfraqueceu muito o final da série. Os últimos vinte minutos da série são inexplicavelmente preguiçosos e mal conceituados, com revelações finais que são mais “blocos de informação vazios” do que qualquer outra coisa, espaços negativos de soluções. Muitas vezes, ao longo da série, esse elemento de mistério e misticismo é até bem vindo, mas acaba chegando a um grande NADA que irritou grande parte da legião de fãs.

Só que isso faz muito pouco para apagar tanta qualidade e tanta intriga que a série traz. Especialmente para nós, hoje, BSG é uma ferramenta interessante da cultura pop para entender o mundo que temos. Porque aqueles tempos de trevas do começo do século pariram o momento insano que temos hoje, com o conservadorismo tresloucado e o messianismo político sendo responsável por, bem literalmente, a morte de muita gente. Somos filhos de guerras fictícias, respirando as cinzas de terrorismo + paranoia x tempo.

Só que Battlestar Galactica também é uma série sobre encarar a tempestade de frente. Sobre arrependimento e amizades que salvam a nossa vida. Sobre como o dever é o hábito de heróis que dispõem da própria vida em prol de muitos. Temas eternos daquelas histórias que acompanham nossa evolução por esse Tempo tão conflituoso. Todo o Tempo, na verdade.

A presidente Roslin tem um painel no qual tem anotado o exato número de pessoas que sobraram. Esse número sofre updates diários com tantas perdas. Mas há uma cena em que ela precisa adicionar um número. Alguém, numa das naves do comboio de fuga, teve um bebê. Ela anota o número a mais e chora. É uma cena tão, tão significativa para o nosso tempo, quando números de mortos mudando diariamente nos preocupam tanto. Battlestar Galactica, e esse 2020, é sobre proteger o que importa, contar as poucas vitórias e atravessar a tempestade, para sairmos do outro lado ainda humanos.

So say we all.