"A censura no Brasil hoje é um fato", diz Wagner Moura | JUDAO.com.br

É sim. Mas de um outro jeito bem mais sutil e igualmente escroto.

Em Setembro do ano passado, a gente publicou um texto aqui falando sobre o cancelamento da data de estreia, em território nacional, de Marighella, a cinebiografia do político, escritor e guerrilheiro, marcada inicialmente para 20 de Novembro de 2019. Explicamos que tudo aconteceu por conta de uma burocracia burra, numa mistura de “má vontade” com uma verdadeira zona que acometeu a Ancine de lá pra cá.

O diretor do filme, Wagner Moura, em sua primeira incursão por trás das câmeras, tem um outro nome pra isso. “A censura no Brasil hoje é um fato. Interditaram a cultura”, afirma o cineasta. “Marighella não é um caso isolado”, diz, reforçando ainda que o presidente declarou guerra à cultura e age com “vingancinha” contra a classe artística que o critica — além, claro, de todo nazismo que descobrimos, não surpreendentemente, estar presente na Secretaria Especial de Cultura.

“Nós sabíamos que seria dificílimo fazer este filme. Estou muito preparado com isso [ameaças], não tenho problema nenhum em debater. O que eu não estava preparado era para o filme não estrear no Brasil, quando nós já tínhamos uma data de estreia, tudo combinado”, disse ele, num debate depois da exibição do filme, em Lisboa.

Isso ANTES da estreia enfim ser confirmada para o dia 14 de Maio (até segunda ordem, vamos ser francos).

Numa conversa com Leonardo Sakamato para o seu blog no UOL, ele ainda explicitou o que estava querendo dizer. “Como grande empresa, a O2 não pode chegar e dizer que a ANCINE censurou o filme. Mas eu posso. Sustento o que já disse. É uma censura diferente, mas é censura, que usa instrumentos burocráticos para dificultar produções das quais o governo discorda”.

Era justamente aí que a gente tava querendo chegar.

Na semana passada, antes de fazer aquele vídeo aterrador que evocava Goebbels, o ex-secretário da cultura já tinha feito uma live ao lado do presidente eleito, na qual apresentou alguns dados sobre o tal programa de incentivo à cultura voltado para conservadores. Tamos falando de um investimento de R$ 20 milhões do Fundo Nacional de Cultura para editais com aportes diretos do governo e que, em sete categorias, vai selecionar cinco óperas, 25 espetáculos teatrais, 25 exposições individuais de pintura e 25 de escultura, 25 contos inéditos, 25 CDs musicais originais e 15 propostas de histórias em quadrinhos.

O agora defenestrado secretário que, coitadinho, não sabe usar o Google, afirmou que este tipo de edital vai selecionar produções com um viés que você bem imagina, sabe? Vai rolar, segundo ele, uma “curadoria”. Algo que o presidente chama de “filtros”, mas recusando solenemente o termo “censura”. Segundo ele, quem não aceitar, basta pedir “dinheiro para seu vizinho e vai fazer o filme que bem entender” e então faz questão de afagar o homem que pouco depois demitiria: “Depois de décadas, agora temos sim um secretário de cultura de verdade. Que atende o interesse da maioria da população brasileira. População conservadora e cristã”.

Era sobre ISSO que Moura falava. “A forma que o governo escolheu para censurar a cultura no Brasil foi aparelhar instituições, como a Ancine, uma vez que nosso cinema, nosso teatro, ainda são – infelizmente – dependentes de recursos públicos”, explicou ele. “Quando a Ancine é aparelhada pelo bolsonarismo, qualquer pedido com relação a um filme como o Marighella será negado”. O diretor de Marighella reforça que a cultura do país deve abraçar a sua diversidade, com todas as suas diferentes manifestações, inclusive as manifestações políticas. “Isso passa pela ignorância de ver a cultura como máquina de propaganda. Essa gente da Secretaria de Cultura diz ‘vamos criar uma arte conservadora e de direita, não vai ter fomento para gente de esquerda’ – o que é uma imbecilidade”.

Sobre CENSURA, diz o dicionário: “análise, feita por censor, de trabalhos artísticos, informativos etc., geralmente com base em critérios morais ou políticos, para julgar a conveniência de sua liberação à exibição pública, publicação ou divulgação”. Não temos no Brasil, pelo menos AINDA, uma estrutura como aquela que se estabeleceu durante a ditadura militar, que depois da promulgação do AI-5, pregava que toda publicação ou manifestação artística deveria ser previamente aprovada e sujeita à inspeção pelos chamados agentes autorizados.

É, isso a gente não tem. Mas temos aquela que deveria ser a principal instituição nacional de apoio à cultura dizendo abertamente que só vai apoiar ALGUNS tipos de cultura. Previamente aprovada e sujeita à inspeção. Sacou qual é? Não é censura. Mas é. Não é censura por proibição. Mas sim censura por ESTRANGULAMENTO.

Quando escrevi sobre a situação surreal pela qual passa a ANCINE, relembrei a frase de uma maravilhosa professora da faculdade: “quem controla a cultura, controla a narrativa. E quem controla a narrativa, controla a história”.

Junte isso ao fato de que eles ainda pretendem fazer um outro edital, de cinema, para recontar a história de determinadas figuras e já dá pra imaginar o que diabos vem por aí. Revisionismo histórico NA VEIA. Preparem-se para produções exaltando torturadores, deixando claro que a ditadura só foi dura com quem não era cidadão de bem... Fica aí, pra gente levantar depois, a discussão sobre quais distribuidoras e exibidores vão OFICIALMENTE topar entrar nesta brincadeira, colocando-se diretamente como apoiadoras deste tipo de postura... Mas, por enquanto...

“Nós vamos com certeza questionar o programa na Justiça, dependendo de como vier o edital (especificando as regras para concorrer ao financiamento). Se vier no contexto que foi falado pelo [Roberto] Alvim, certamente será passível de questionamento na Justiça”, afirmou o deputado Marcelo Calero (Cidadania-RJ), em entrevista à BBC News Brasil. Ex-ministro da Cultura do governo Michel Temer e também ex-secretário de Cultura da cidade do Rio de Janeiro, ele afirma que o programa é um erro na sua própria concepção porque uma política cultural feita pelo Estado não pode escolher projetos por critérios subjetivos.

“O edital tem que ter critérios técnicos e muito bem definidos. Porque o perigo é você ter um dirigismo cultural. No momento em que o Estado começa a avaliar o conteúdo, você passa a ter censura. É inaceitável esse edital como o Alvim estava pretendendo construir. A cultura tem que ser livre”, finaliza ele.

COMO. QUERÍAMOS. DEMONSTRAR.

Em tempo: vejam Marighella nos cinemas. Sério. De preferência, na semana da estreia que, lembrando, é no dia 14 de maio. A gente sempre fala isso sobre filmes nacionais, mas num caso como este, a importância é DOBRADA.