Obra da quadrinista catarinense Fefê Torquato tem uma tema central bastante claro e necessário, mas é repleta de sutilezas que são muito mais do que apenas easter eggs para fãs: elas são a pintura do mundo que a gente quer e precisa
Assim que foram divulgadas a capa e as primeiras imagens de Tina – Respeito, a Graphic MSP estrelada pela personagem há muito esperada como parte das produções do selo, rapidamente surgiram comparações com a nova She-Ra de Noelle Stevenson. Aquele lero-lero de sempre, o mundo tá chato, as feministas tão estragando minha infância, muita justiça social, enfim.
Mas, assim como a responsável pelos roteiros e arte deste gibi especial da Tina, Fefê Torquato, se sentiu lisonjeada pela comparação, a gente do lado de cá entende que ela faz um bocado de sentido, especialmente depois de ler a graphic novel.
Assim como Noelle, a quadrinista/ilustradora reinterpreta a protagonista e todo o universo ao seu redor modernizando a narrativa e aplicando mais profundidade, sem JAMAIS perder a sua essência. Da mesma forma que a She-Ra continua uma guerreira poderosa e IRREFREÁVEL, a Tina continua aquela mulher decidida, corajosa, contemporânea, com um olhar tão afiado quanto a Espada da Proteção para o mundo ao seu redor, quanto se viu em boa parte das HQs do Mauricio. Por mais que ambas sejam humanas, por mais que ambas tenham suas inseguranças, suas questões, seus medos.
Esta ainda é a Tina criada por Mauricio de Sousa. Aliás, ela SÓ é a Tina criada pelo Mauricio. A grande diferença é que ela não está com suas curvas destacadas e tampouco estrelando uma trama que explore a sua sexualidade, assim como a She-Ra não anda mais por aí de sainha esvoaçante.
A Tina da Fefê Torquato é uma jovem recém-saída da faculdade e da casa dos pais, querendo construir a sua vida. Uma jovem como tantas outras — no caso aqui uma jornalista, que escreve uma newsletter bombada de leitores, que tem uma boa quantidade de seguidores nas redes sociais, mas que não vê isso se converter em grana. Justamente por isso, ela rala pra conseguir uma chance num daqueles jornalões, repletos de “lendas” sobre as quais ela ouviu falar ainda na cadeira da sala de aula. Perto de realizar seu sonho, ainda nervosa, ainda cavando suas primeiras pautas enquanto tenta fazer novos amigos e equilibrar as demandas merda do dia-a-dia, se depara com algo que é infelizmente tão comum quanto escroto: assédio sexual.
Só por isso, por abordar um tema principal tão espinhoso e num espaço completamente inédito até o momento, já daria pra dizer que Tina – Respeito chega a ser tão importante quanto Jeremias – Pele em termos de pioneirismo, de plantar as sementes para uma discussão cada vez mais necessária. Mas o legal é que o gibi vai MUITO além disso.
É nos pequenos detalhes, nas sutilezas, na delicadeza, que Fefê mostra o quanto se debruçou para aproveitar a chance de construir um universo de verdade, um universo crível, ao redor da Tina, da Pipa, do Rolo. Delicadeza que, aliás, já começa pelo traço lindíssimo, limpo, cartunesco, dinâmico, cheio de movimento, mas também cheio de expressão. Fefê opta por uma inteligentíssima economia de elementos, se focando em caras, bocas e olhares que transmitem mais do que seria necessário em muitos diálogos. O resultado é uma humanização tão grata que faz a Tina se tornar real MESMO, no jeito meigo e desengonçado, nos óculos enormes.
E a cor, cara. Isso é um caso à parte. A aquarela da artista joga a arte pra um nível acima, sem exagero. É tudo tão fluido, tão cheio de vida, tão intenso, que eu queria MUITO morar naquela cidade, naquelas pinceladas perfeitas em sua imperfeição.
Mas aí temos os detalhes sutis do ponto de vista narrativo — claro que tem diversos easter eggs, que vão desde a mãe da Tina ser retratada como a ex-hippie que a própria Tina era assim que o Mauricio a criou até os objetos de cena nas estantes e armários, os textos dos post-its, enfim. Mas esta é uma história com mulheres gays e que falam sobre isso abertamente. Uma história sobre as dificuldades específicas das mulheres negras. Que discute mulheres cis e trans da mesma forma. Que mostra uma mulher gorda, a Pipa, se posicionando de um jeito maravilhoso — e inclusive protagonizando um diálogo com a Tina que, apesar de breve, é a prova de que por mais “desconstruidão” que aquele seu melhor amigo seja, ele ainda pode e DEVE ter algum tipo de preconceito introjetado. E isso precisa ser discutido, exposto, debatido. Pra que a gente cresça e aprenda a cada dia.
Uma história que discute feminismo sem rodeios (e, não por acaso, tem um pôster fazendo referência ao feminismo interseccional na parede do apartamento da Tina) de maneira natural. Tudo isso tá lá, em cada balão. E digamos que não deveria, mas chega a ser surpreendente que esteja mesmo sendo tratado de uma maneira que não soa “olha só, aqui eu vou falar sobre esta mina ser uma lésbica, tá?”. É lindo. É vivo. É humano. É como o mundo deveria ser. E é uma sensibilidade que só seria possível tendo uma pessoa como a Fefê por trás do projeto.
Uma pessoa que entrega uma conclusão da qual o leitor sente orgulho, pela qual o leitor torcia mesmo sem saber direito. E pela qual o leitor não podia imaginar mas que, gente, faz um sentido danado e está intrinsecamente ligada ao real papel do jornalismo, ele mesmo, aquele DE VERDADE.
A barra destas Graphic MSPs, vou te contar, deu uma subida considerável com projetos como este e Pele nos últimos anos. O trabalho de encontrar as pessoas certas para as histórias certas vai ficar ainda mais difícil para se igualar não apenas em qualidade enquanto narrativa gráfica, mas também em importância das temáticas, em coragem. Um novo universo que eu, enquanto leitor, estou MUITÍSSIMO disposto a ver onde vai dar.