Ao ouvir o último disco e conversar sobre ele com o sempre produtivo Fabiano Negri, sentimos aqui uma sensação de que ele tava falando sobre música mas podia tranquilamente estar falando sobre o jornalismo de entretenimento…
Quem acompanha o JUDÃO.com.br já deve ter nos ouvido falar, em algum momento, do quanto TÁ FODA. Desde antes de pandemia, quarentena e uma coleção de aspirantes a fascistas em muitas poltronas do poder, já tava foda. São 20 anos no ar, produzindo os mais diversos conteúdos relacionados à cultura pop, analisando o que muita gente pensa que é SÓ um filme de maneira mais profunda, desafiando os clichês e lugares comuns nos quais outras publicações especializadas em entretenimento caem todos os dias, mostrando como a cultura pop pode mudar (e muda) o mundo.
Tudo isso sem um único centavo de publicidade, ignorados por muitos mercados, contando só com a ajuda (cada vez menor) de uma galera no Catarse.
O mais foda é que, NÃO, este não é um texto sobre a gente. Mas bem que poderia ser.
Porque a história que o multi-instrumentista Fabiano Negri conta sobre a sua relação com a música poderia ser igualmente a nossa com o jornalismo de entretenimento. Egresso de Campinas/SP e em atividade musicalmente desde os anos 1990, o músico adentrou o mundo do rock chutando a porta da frente na liderança do Rei Lagarto, uma BAITA banda, assim mesmo, em letras maiúsculas, de hard rock. Ao longo de sua trajetória, não se deixou limitar por rótulos e fez muito mais do que só rock clássico, mas mergulhou no blues, no soul, no folk.
No grupo e em sua carreira solo, exerceu os papéis de letrista, compositor, cantor, pianista, organista, guitarrista, produtor. Com muitos elogios do público e da crítica especializada (inclusive DA GENTE AQUI), nunca parou, lançando novidades com assinatura autoral de maneira incansável.
Mas se você for comparar o que eu quis dizer entre o primeiro e o segundo parágrafo, vai sacar onde estou querendo chegar. Sim, sim. Como a gente, o Fabiano deu muito murro em ponta de faca. E agora cansou. Recentemente, ele lançou o lindíssimo The Fool’s Path, seu mais recente álbum solo. E também o ÚLTIMO.
Talvez o trabalho mais pessoal de toda a sua longa discografia — que inclui ainda a Unsuspected Soul Band, mais cheia de groove, e o Dusty Old Fingers, grupo incrível que é praticamente uma releitura dos Stones — este disco é uma obra conceitual que conta a sua trajetória no meio artístico/musical nos últimos 25 anos.
“As demos básicas surgiram no final de 2015, após o lançamento do meu álbum solo Maybe we’ll have a good time, for the last time“, conta ele, em papo exclusivo com o JUDÃO.com.br. “Desde essa época, eu já estava questionando a minha relação com a carreira artística. Eu já havia me cansado das ‘expectativas’. Na verdade, eu compus o Maybe... imaginando que ele seria o meu último disco mas, por incrível que pareça, ele foi muito bem recebido à época. Então eu acabei protelando esse momento. Mesmo assim, senti a vontade de começar a escrever o meu testamento final como artista solo. Foi aí que o The Fool’s Path começou a tomar forma”.
O que tomou forma, no caso, foi um disco gestado ao longo de CINCO anos, produzido pelo próprio Fabiano e que tem Cesar Pinheiro na bateria e Ricardo Palma no baixo. Todo o restante, piano, guitarra, voz, ficou a cargo do músico. O resultado é uma linda obra bastante diversificada, ainda que de tons mais tristes, mas que mostra o Fabiano caminhando por tudo que é referência em sua carreira, sem precisar ficar preso ao combo hard rock + heavy metal com o qual acabou sendo identificado por conta do Rei Lagarto. Tem psicodelia aqui, tem um tantinho de progressivo acolá, tem pop e tem até a linda balada Blind Superman, que é praticamente um Elton John em termos de performance mais teatral.
Ah, sim, por falar na voz, este aqui é um Fabiano menos gritado, mais sutil, que deixa a sua potência já (re)conhecida para privilegiar o colorido, os muitos tons da interpretação, as camadas, a diversidade. No todo, apesar do peso em alguns momentos, The Fool’s Path é menos porradeiro e mais climático, ambiental, com um baita peso narrativo que ajuda a construir a história de um tolo. Ou melhor, de uma fusão de tolos.
“Entre o tolo que insistiu por 25 anos em uma carreira que, devido ao seu estilo, estava fadada ao fracasso, e o tolo da carta de tarô, que prega um recomeço, mas sem a segurança de que esse seja certo ou errado. A bela capa feita pelo artista Emerson Penerari resume a jornada errática de um artista independente”, explica.
A recepção, no geral, está longe de ser ruim, mas Fabiano diz que é “o de sempre”. Segundo ele, algumas poucas pessoas, aquelas que ouvem com atenção, dão valor ao trabalho, mas a grande maioria do público, que poderia consumir a música de um artista deste estilo, age de forma indiferente. No fim, ao invés de arriscar, de tentar o novo, de apoiar e dar espaço pro independente, pro pequeno, os ouvintes parecem estar sempre em busca daqueles mesmos medalhões de sempre — e tome Metallica, Led Zeppelin, Rolling Stones e demais velhos conhecidos do tal “rock clássico”.
Sabe aquela galera que, ao invés de experimentar um zilhão de novas séries inéditas lançadas todos os meses, prefere ficar na caixinha de sempre e assistir de novo e de novo Friends pela milésima vez? Então. A mesma parada. ¯\_(ツ)_/¯
O motivo da aposentadoria solo de Fabiano é, principalmente, financeiro. “Apesar de haver muito amor envolvido no que eu faço e de eu não poder reclamar de reconhecimento do meu trabalho, é insustentável chegar aos 44 anos e se achar no direito de continuar sonhando”, explica ele. “A inspiração começa a ir embora”. Elogios são muito legais, ele lembra, mas não pagam boletos. Pois é, a gente sabe muito bem disso.
O músico arriscou ainda fazer algumas cópias físicas de The Fool´s Path, que está vendendo pelo seu site pessoal. E, da mesma forma que ele centraliza rigorosamente todo o processo musical, é ele quem fala com a fábrica, que recebe os pedidos, que empacota e coloca para envio pelo correio. “Dentro do possível, o resultado está sendo bacaninha”, afirma, com “risos” para enfatizar o bacaninha...
Um dos motivos pelos quais ele ressalva que os interessados deveriam comprar o disco físico é que esta é a ÚNICA forma de ouvir o dito cujo na íntegra, já que Fabiano postou apenas algumas faixas em plataformas de streaming. “Eu tenho quase meio milhão de plays só no Spotify, e a receita total não pagaria a produção de UMA única música”, revela. “Então foi uma estratégia, que, dentro do possível, deu certo. Embora eu ainda tenha um prejuízo em relação à produção, ele foi bem menor do que se estivessem todas as músicas disponíveis para streaming”.
Para ele, no entanto, trata-se de uma decisão pessoal, direcionada ao artista solo, que é a sua ocupação principal. Ele promete continuar com seu trabalho como professor e também como produtor — neste último ponto, ajudando novos artistas a encontrarem a sua própria voz. “Às vezes tento, mas não é possível me desvincular da música”, chega a lamentar Fabiano. “Isso me definiu por quase toda a minha vida e é a minha profissão. O que eu não consigo no momento é investir em algo novo e repetir o ciclo que eu conheço muito bem. Para 2021, por exemplo, já tenho uma boa ocupação. No aniversário de 30 anos da fundação do Rei Lagarto, estarei cuidando do relançamento de todos os álbuns remasterizados e com faixas bônus nas plataformas de streaming”.
Mas existe algo que o faria mudar de ideia? “Olha, eu passei a minha vida compondo. Tenho muitas músicas que não foram lançadas, e algumas até se perderam em HDs queimados”, confessa. Ele completa dizendo que, apesar de ter discos dos quais se orgulha bastante, até hoje não pôde ter acesso a uma produção que realmente estivesse em sintonia com o que ele originalmente esperava das canções. “Se eu tivesse essa condição e ela fosse gerada exclusivamente pela renda dos meus próprios trabalhos artísticos, certamente eu estaria disposto a continuar”.
É foda, Fabiano. A gente sabe que tá foda. E sabe que a vontade de continuar pode ser grande, mas tem horas que é PRECISO parar.