Ícone da contraversão artística dos anos 1960, precursor do rap, que transformou lutas em espetáculos… O Melhor de Todos
Um histórico de 29 lutas vencidas e os cinturões de campeão do Conselho Mundial de Boxe e da Associação Mundial de Boxe. Tudo isso foi perdido em 28 de abril de 1967, quando, após se recusar a lutar na Guerra do Vietnam, Muhammad Ali teve a licença de boxeador cassada. Em junho daquele ano, num julgamento que teve apenas 21 minutos de deliberação, Ali foi declarado culpado de um crime que poderia colocá-lo por cinco anos na cadeia.
Parecia o fim do mundo para aquele que já era um dos maiores pugilistas da história, que estava em seu auge. Uma vítima escolhida pelo governo para mostrar que todos aqueles que se rebelavam contra a Guerra do Vietnam iriam pagar. Porém, Ali não se calou: começou a fazer discursos em escolas, rádios e TVs, colocando pra fora tudo que acreditava que era errado não só naquela guerra, mas na sociedade americana.
Isso tudo fez surgir uma ideia na revista Esquire, uma publicação para o público masculino que existia desde 1933, mas que, nos anos 1960, era uma das pioneiras do chamado “New Journalism”, que usava técnicas de literatura para escrever notícias, relatar fatos. Na visão daqueles jornalistas, Muhammad Ali era um mártir. “E quem é um mártir? São Sebastião é um mártir”, disse Carl Fischer, fotógrafo da revista.
São Sebastião, se você não sabe, era um cristão que, de acordo com a lenda, se alistou no exército do Império Romano. Porém, se viu obrigado a matar outros cristãos e, ao ser benevolente com eles, acabou condenado à morte por flechas pelo Imperador Diocleciano. Com o corpo fatalmente ferido, Sebastião foi jogado no rio apenas para ser encontrado por Santa Irene, que cuidou das feridas do soldado. Recuperado, Sebastião não baixou a cabeça e voltou até Diocleciano para enfrentá-lo, sendo mais uma vez condenado à morte – agora por espancamento. Nessa segunda vez, São Sebastião não resistiu, mas esta história foi o suficiente para atravessar séculos, transformando o soldado em um mártir da luta dos cristãos e sendo representado por toda a Idade Média em quadros no qual aparecia com o corpo cravejado de flechas.
E foi assim que Fischer quis representar Ali: como um boxeador negro, que mesmo sendo condenado à morte pública, não se calou. Continuava expondo seu corpo, agora cheio de flechas. Só que São Sebastião era um santo cristão.
“Eu sou um muçulmano agora”, disse Ali ao fotógrafo quando soube qual era a ideia da capa da revista. Para resolver a questão, o fotógrafo ligou diretamente para Herbert Muhammad, filho do líder religioso que Ali seguia, Elijah Muhammad. “Ah, isso é uma boa publicidade. Pode falar pra ele que ele pode fazer”. E assim foi publicada a edição de Abril de 1968 da revista Esquire, com uma das mais icônicas imagens da cultura pop – um reflexo daquela década, que trouxe a coragem de unir, em uma só foto, contraversão, religião, política, esporte e cultura para criticar tudo aquilo que havia de errado na sociedade.
Uma imagem perfeita para representar uma grande matéria, escrita por Leonard Schecter num estilo que foi disponibilizada na íntegra no último sábado (4) no site da Esquire.
Este é um dos fatos que revelam a importância de Muhammad Ali não para o esporte, mas para a cultura pop do mundo como um todo. Quando ainda era chamado de Cassius Clay, o boxeador já chamava a atenção de todos pelo seu jeito de falar, um retrato do Sul dos EUA, carregado com a sua autodeterminação – que ficou mais claro em 1963, quando ele lançou o álbum de palavra FALADA I Am The Greatest. Lá no meio, a primeira música do boxeador: Stand By Me.
Aos ouvidos de hoje, pode parecer mais um famoso brincando de fazer música. Não era. O ritmo e a musicalidade das rimas de Ali, além das brincadeiras, acabaram por ser uma das grandes influências de um gênero musical que estava pra nascer: o rap. É só ouvir um pouco que você vai perceber diversos elementos ali.
Aos poucos, cada entrevista de Ali foi se tornando uma atração à parte. Cada luta, um espetáculo. Não demorou pra que as grandes lutas do pugilista fossem transformados em grandes eventos, com títulos ainda pouco usados no boxe – começando por The Fight of the Century, contra Joe Frazier, e que depois passou a usar o jeito do próprio Ali falar para dar ao mundo nomes como Thrilla in Manilla, The Rumble in the Jungle e Drama in the Bahamas.
Isso tudo ajudou a figura de Ali ser ainda maior. Em inglês foram escritos (até agora) nada menos que 32 livros sobre o esportista, abordando desde o boxe à luta contra a Guerra do Vietnam, passando pela expressão cultural dos negros norte-americanos.
Quando Éramos Reis, como já falamos aqui no JUDÃO, ganhou o Oscar de Melhor Documentário ao retratar Rumble in the Jungle, a grande luta contra George Foreman. Houve também participações em séries como Veja$, Touched by an Angel e Diff’rent Strokes – essa última exibida no SBT como Arnold, mas que, com humor, abordava o preconceito nos EUA dos anos 1970 e 1980. O nome do episódio não faz por menos: The Hero.
Teve também uma série animada, chamada I Am the Greatest: The Adventures of Muhammad Ali. Na Broadway, no musical Buck White, Ali fez sete performances, todas durante a época na qual estava banido dos ringues.
Nos quadrinhos, foi um dos poucos que pode afirmar que deu uma surra no Superman. E que inspirou um vilão do Batman, Cassius “Clay” Payne, o quinto Cara-de-Barro.
Por tudo isso, por essa importância que transcende qualquer esporte, Ali recebeu uma grande homenagem em vida: foi nos Jogos Olímpicos de 1996, quando teve a missão de acender a Pira Olímpica. Isso em Atlanta, Georgia, um estado que sofreu muito em toda a sua história por conta do preconceito e da escravidão. E na primeira cidade que, em 1970, a comissão atlética finalmente aceitou Ali de volta ao boxe, depois de ser renegado nos quase 3 anos que vieram antes.
E isso tudo é apenas uma pequena amostra de que Muhammad Ali foi um grande herói. E é uma lenda eterna.