Agora dá pra ouvir a maravilhosa Fase Racional do Tim Maia nas plataformas de streaming. E você deveria fazer isso. | JUDAO.com.br

Gravada originalmente entre os anos de 1975 e 1976, a trilogia é considerada um dos seus picos de criatividade — mas além de não ter sido um sucesso de vendas, acabou sendo renegada pelo próprio músico

Quando a gente pensa em Tim Maia, imediatamente se monta na nossa cabeça a imagem do músico marrento, que implicava com o retorno sonoro em pleno palco, que se atrasava pros compromissos, excêntrico, brigão, meio mal-humorado — o que é uma tremenda injustiça porque quem conviveu diretamente com o cara diz que ele era divertido, carinhoso, simpático, piadista. Mas, além disso, também é injusto pensar em Tim Maia como apenas e tão somente um personagem de palco quando, na verdade, estamos falando de um músico brilhante, um dos principais responsáveis por trazer o soul e o funk para o coração da nossa música popular brasileira.

Assim como é injusto que, apesar de estarmos falando de um hitmaker por natureza, ele seja lembrado SOMENTE pelos sucessos fáceis, aqueles que qualquer cantor de karaokê manda sem pensar, tipo Primavera, Descobridor dos Sete Mares, Azul da Cor do Mar, Não Quero Dinheiro (Só Quero Amar), Gostava Tanto de Você, Vale Tudo e Do Leme ao Pontal. Claro que tudo isso é Tim pra diabo, é Tim na sua essência, é Tim enraizado de vez na nossa cultura pop. Uma playlist de responsa. Mas tem um pedaço que o grande público meio que desconhece e que vale demais uma audição demorada e detalhada — a sua chamada fase Racional.

Os dois volumes de Tim Maia Racional, lançados originalmente entre os anos de 1975 e 1976, são daquele tipo de pequena raridade em formato vinil disputada a tapa pelos colecionadores. Pudera: além de não serem, na época do lançamento, grandes sucessos de vendagem, Tim se desiludiu com a ideologia que defendia na época e os renegou sumariamente, recusando-se a divulgar suas canções e inclusive trabalhando ativamente para tirar as cópias restantes das lojas. Ambos só veriam a luz do dia em formato CD em 2011, 13 anos depois da morte do cantor, como parte de uma coleção organizada pela Editora Abril.

Mas agora, para alegria de quem curte boa música, a gravadora Vitória Régia, fundada por Tim e hoje liderada por Carmelo Maia, seu filho, reuniu uma equipe de confiança pra organizar e digitalizar o acervo do mítico músico, o que inclui os discos da fase Racional, agora finalmente disponibilizados nas plataformas de streaming. “Fui obrigado a priorizar, organizar, digitalizar as masters e revisar os contratos, pois não existiam serviços de streaming na época”, explica Carmelo, em entrevista pra revista Rolling Stone.

Oriundo da Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro, Sebastião Rodrigues Maia começou a carreira musical antes de se tornar Tim, ainda tocando bateria num grupo chamado Tijucanos do Ritmo. Depois ele passaria pro violão e então se encontraria, de fato, no trato de seu vozeirão poderoso — tanto é que, em 1957, fundou um grupo vocal de nome The Sputniks, que trazia, entre outros, um famoso integrante que igualmente explodiria anos mais tarde: Roberto Carlos.

Dois anos depois, embarcaria pros EUA, onde estudou inglês e começou a mergulhar de cabeça na soul music, participando até do grupo de vocalistas The Ideals, mas sendo conhecido não como Tim e sim como Jim. Já no Brasil, antes de ter seu primeiro trabalho solo, um compacto (o equivalente a um EP), lançado pela CBS em 1968, teve composições gravadas por Roberto e Erasmo Carlos. O primeiro álbum solo completão mesmo, autointitulado, só viria em 1970, pela Polydor.

Nesta mesma gravadora, já se destacando pela levada mais dançante, em certas composições numa pegada mais disco, noutras temperando o nosso samba tipicamente brasileiro com um soul meio James Brown, lançaria três outros discos mas, por volta de 1974, o músico preparava sua chegada triunfal em uma nova gravadora, a RCA. A banda de apoio do cara já tinha composto um monte de faixas instrumentais, tava tudo preparado. Mas aí pintou no seu caminho a doutrina da Cultura Racional. E tudo mudaria de um jeito que nem ele e ninguém da indústria fonográfica imaginava.

Só contextualizar, a tal Cultura Racional é uma religião surgida aqui no Brasil na década de 1930, ali nos arredores de Brasília, fundada pelo médium carioca Manoel Jacintho Coelho — o cara que se tornaria, durante quase dois anos, praticamente um mestre para Tim Maia.

Derivada originalmente do espiritismo, a Cultura Racional segue os fundamentos descritos numa extensa obra chamada Universo em Desencanto, que em cerca de 1.000 livros (sem exagero) traz os ensinamentos ditados pelo Racional Superior, que habita o Mundo Racional. Tamos falando de uma mistureba que coloca cosmologia, metafísica e ETs num mesmo balaio de gato, deixando claro que para seguir os ensinamentos da Cultura Racional, não haveria necessidade de frequentar quaisquer templos ou casas espirituais como igrejas, sinagogas, mesquitas ou terreiros. Só a leitura sequencial dos livros seria o bastante.

E Tim leu. Se converteu. E aí, além de mandar os livros do grupo para nomes como James Brown, Curtis Mayfield e John Lennon, escreveu um monte de letras inspiradas nos preceitos da Cultura Racional para que dessem vida àquele monte de bases já gravadas. Claro que a gravadora ficou enfurecida, não era o que esperavam, definitivamente. Eles se recusaram a lançar a parada e o músico acabou comprando as fitas originais, colocando o material na rua por um selo próprio de nome Seroma (que, além de ser a palavra “amores” ao contrário, também serve de abreviação para o seu nome completo).

Sem beber e sem se drogar, Tim Maia estava limpo de tudo e isso fica claro na sua voz — para o bem e para o mal, óbvio, já que a rouquidão do sujeito é de fato uma de suas marcas registradas. Mas as composições, uau, que delícia. São a cristalização do soul/funk que se tornou sua marca registrada, só que num espírito que lembra um tantão a música gospel americana que principalmente os negros fazem de maneira tão brilhante e envolvente.

Uma das composições mais conhecidas da época é Que Beleza, talvez uma das poucas que acabaram se tornando de fato parte do imaginário popular relacionado diretamente ao trabalho do Tim. Já O Caminho do Bem ganhou nova sobrevida ao ser integrada na trilha sonora do filme Cidade de Deus.

Mas a relação de amor de Tim Maia com a Cultura Racional durou pouco. Desiludido com o mestre Manuel, alguém que pra ele não era tão mestre assim, ele tirou os discos de circulação e retomou o estilo de vida um tanto conturbado de outrora. Nos anos 2000, como parte da coleção da Abril, uma série de canções inéditas desta fase que tinham sido recentemente descobertas acabaram sendo finalizadas e colocadas em disco, totalizando um terceiro volume que Tim Maia nunca nem se preocupou em lançar como parte de seu desgosto. O lançamento em streaming já inclui também este disco, fechando devidamente a trilogia religiosa do cantor.

No entanto, parece que nem todo mundo tá feliz com este lançamento — quatro anos atrás, na época do lançamento da cinebiografia do cantor, um de seus parceiros mais frequentes, o soulman Hyldon, já tinha criticado em entrevista ao UOL a administração que Carmelo faz da carreira do pai, em especial no que diz respeito à cobiçada fase Racional. “O Tim nunca iria permitir que aquele disco fosse relançado. Aquilo ali foi o maior fiasco da vida dele”, afirma. “Os herdeiros teriam que zelar pela obra. O Carmelo chegou, pegou as sobras que tinham lá, com vozes ruins do Tim, chamou músicos para tocar, e ainda fez o terceiro volume do ‘Universo em Desencanto’. Isso é grave”.

De qualquer maneira, para que você possa tirar suas próprias conclusões a respeito, aqui abaixo os três discos tão reunidos numa única playlist, na sequência. Pra você mandar o play e não ter nenhum trabalho.