Deu de histórias em quadrinhos para Alan Moore | JUDAO.com.br

Mais umas 250 páginas e a aposentadoria chega… Não sem antes dizer uma palavrinha ou duas a respeito, né? :P

Em uma passagem de Jerusalem, aguardado segundo livro de prosa do inglês Alan Moore com suas mais de 1500 páginas, um personagem faz uma reflexão importante, falando a respeito de outro sujeito da trama focada em sua cidade natal, Northampton. “Ele não dá muita bola para os quadrinhos nos dias de hoje, por mais que eles tenham se tornado de bom gosto o bastante para que adultos possam lê-los sem sentir medo do ridículo. Ironicamente, na visão de David, isso faz com que eles sejam ainda mais ridículos do que quando eram pensados como uma forma perfeitamente legítima e bela de entreter as crianças”.

Durante uma coletiva de imprensa em Londres para divulgar o livro, de acordo com reportagem do jornal The Guardian, o barbudão deixou claro que esta, provavelmente, era uma espécie de mensagem do autor. “Tenho certeza de que existe uma boa razão para que centenas de adultos fiquem loucos para ler as últimas aventuras do Batman, mas eu não sei exatamente que razão seria esta”.

Pode parecer estranho que o cara que está dizendo isso é justamente um dos mais icônicos nomes do mundo dos gibis, responsável por clássicos como Watchmen, V de Vingança, Liga Extraordinária e Do Inferno, além de passagens memoráveis à frente de títulos como Miracleman e Monstro do Pântano. Mas depois de anos criticando abertamente a indústria das HQs, finalmente Moore fez o anúncio que a gente sabia que viria em algum momento: “restam cerca de 250 páginas de quadrinhos em mim”.

Alan Moore vai se aposentar dos gibis.

Para espanto geral, contudo, o sujeito começou a explicar sua decisão sem detonar Marvel e DC, seu passatempo favorito, mas sim fazendo uma reflexão criativa: foi quando o escritor percebeu que tinha entrado em uma zona de conforto ao escrever HQs. “Eu acho que já fiz o bastante pelos gibis. Fiz tudo que podia. Acho que se eu continuar a trabalhar com quadrinhos, inevitavelmente as ideias vão sofrer e vocês vão me ver remexendo em coisas antigas que já fiz. Acho que tanto eu quanto vocês merecemos mais do que isso”.

Eu acho que já fiz o bastante pelos gibis. Fiz tudo que podia

Ele revela ainda que as coisas que o interessam neste momento, como escritor, são justamente as que ele não faz ideia se conseguiria fazer bem, como filmes ou literatura tradicional. “Coisas que eu não tenho certeza se teria a força de finalizar. Eu sei que sou capaz de fazer qualquer coisa que qualquer um faria nos quadrinhos, enquanto mídia. Não preciso mais provar nada pra mim e nem pra ninguém. Estes outros campos me soam muito mais excitantes”. Só que, fazendo uma média que não é exatamente muito comum de vê-lo fazendo, Moore declara: “eu sempre vou reverenciar os quadrinhos enquanto mídia. São um meio de comunicação maravilhoso”.

A primeira incursão de Alan Moore no mundo dos cinemas aconteceu em 2012, quando ele escreveu os roteiros de uma série de curtas-metragens junto com o diretor Mitch Jenkins. Intitulada Show Pieces, a série se divide em cinco partes (Act of Faith, Jimmy’s End, Upon Reflection, A Professional Relationship e His Heavy Heart) e fala sobre Jimmy, um cara que, depois de morrer, vai parar no meio de um “clube de cavalheiros”. Conforme revelou sua filha Leah Moore em uma entrevista há cerca de dois anos, Moore já teria até finalizado o roteiro para The Show, o filme longa-metragem que serve como continuação oficial para Show Pieces. No entanto, nada foi revelado desde então.

Na sequência de seu anúncio de aposentadoria, aí sim como a gente bem já esperava, ele não deixou de dar a sua alfinetada, ao afirmar que espera que Jerusalem não seja adaptado para os cinemas. “Pelo menos, não enquanto eu puder dizer algo a respeito”. Claro que era a deixa que o camarada esperava para falar dos filmes estrelados por super-heróis, a nova máquina de dinheiro de Hollywood. “Eu amo estes personagens pelo que eles representaram pra mim quando eu era um moleque de 13 anos. Eles são personagens brilhantemente desenvolvidos. Mas isso foi 50 anos atrás. Creio que este século precisa, necessita, de sua própria cultura. Ele merece artistas que vão tentar dizer coisas que são relevantes para os tempos em que vivemos. Esta é uma forma mais longa de dizer que estou REALMENTE de saco cheio do Batman”.

Vale lembrar que Moore REITEROU recentemente que está “arrependido” de ter escrito o clássico A Piada Mortal, ao comentar sua adaptação para um longa animado. “Sobre A Piada Mortal em particular, eu nunca gostei muito dela como trabalho – embora, claro, eu me lembre da arte de Brian Bolland como sendo algo absolutamente incrível. Mas achei um tratamento violento e sexualizado demais para um personagem simplista como o Batman e um erro da minha parte, do qual me arrependo”, afirmou.

No desenho animado, Moore seguiu seu expediente-padrão no caso de adaptações de seus trabalhos para outras mídias: pediu para o seu nome ser retirado dos créditos e solicitou que qualquer rendimento que isso pudesse gerar fosse direto para a conta do artista com quem ele fez dupla. O mesmo tem acontecido no caso de reedições de obras como Miracleman, que foi adquirido pela Marvel depois daquela batalha longa e tortuosa entre Neil Gaiman e Todd McFarlane. Nos créditos, inclusive na edição atualmente publicada no Brasil pela Panini, consta apenas “o escritor original”.

Cinema Purgatorio

Mas o que Alan Moore ainda vai entregar antes de sua aposentadoria definitiva? “Ainda tenho alguns números de um gibi da Avatar Press que estou fazendo no momento, que é parte do trabalho de HP Lovecraft no qual venho me debruçando”. Para a editora, nesta pegada de inspiração nos mitos de Cthulhu, Moore já tinha desenvolvido a série em quatro partes Neonomicon, a série em 12 partes Providence e a minissérie Alan Moore’s Yuggoth Cultures and Other Growths. Ao lado do parceiro de longa jornada, o desenhista Kevin O’Neill, ele também tem que finalizar outro projeto para a Avatar, a antologia de horror Cinema Purgatorio, que conta ainda com a participação de outros escritores como Garth Ennis, Max Brooks, Kieron Gillen e Christos Gage. E, como os fãs devotos podiam imaginar, Moore e Kevin terão um último e definitivo volume de Liga Extraordinária para finalizar.

“E depois disso, a não ser que eu faça algum pequeno gibi esquisito em algum ponto do futuro, já deu pra mim nas HQs”, afirma o autor, fechando a conta e passando a régua... e deixando uma fresta aberta na porta. ;)

Enfim, fico aqui com a opinião de Scott Wampler, do Birth.Movies.Death: “Você pode se aposentar sendo Alan Moore ou viver o bastante para se ver transformado no Frank Miller”. Eu não poderia concordar mais com uma frase.