Produzido obviamente sem a autorização da Disney, a obra de Horst Rosenthal coloca o ratinho no lugar do próprio artista para apresentar uma narrativa que serve como testamento da criatividade humana em tempos de trevas
A biografia de Walter Elias Disney, o titio Walt, está longe de ser fofa, colorida e amorosa como as vidas de seus muitos personagens patos e ratos. Uma série de estudiosos especializados em sua trajetória, por exemplo, afirmam que ele participou de reuniões e comícios do Partido Nazista Americano — há quem diga que ele ~só estava tentando derrubar as proibições às suas obras em países como a Alemanha, mas né?
Há ainda toda a questão das muitas acusações de antissemitismo, que o perseguiram durante toda a vida e das quais jamais conseguiu se livrar, em especial pela associação com os caras da Motion Picture Alliance for the Preservation of American Ideals (MPAPAI ou MPA), um grupo conservador que queria livrar a indústria cinematográfica da “infiltração comunista”.
Isso lá em 1944, leia-se.
Assim sendo, chega a ser curioso que, quase cinquenta anos antes de Art Spiegelman publicar a íntegra da seminal obra Maus, com ratos assumindo o papel dos judeus pra contar as atrocidades nazistas nos campos de concentração, uma OUTRA obra de um cartunista amador tenha usado o famoso rato de Disney com o mesmo objetivo. Estamos falando de Mickey au Camp de Gurs, de 1940, uma HQ curta na qual o polonês Horst Rosenthal contava a sua própria história, só que colocando Mickey Mouse como personagem principal, expondo ainda mais todo o absurdo da situação.
Rosenthal nasceu em 1915 na cidade de Breslau, na Polônia. Seus pais eram judeus e, quando era jovem, o sujeito simpatizava com o socialismo — assim sendo, por volta de 1933, quando Adolf Hitler começou a ascender ao poder e o ódio aos judeus passou a se tornar uma realidade na Europa, Rosenthal começou desesperadamente a procurar uma saída do país, vizinho da Alemanha.
Depois de conseguir passar dois meses na França, tentou a todo custo garantir um pedido de asilo político por lá, que eventualmente conseguiria em dezembro de 1936. Mas, depois de algum tempo do que pareceu uma vida tranquila na Rue de Clignancourt, em Paris, em Setembro de 1939 Hitler invadiu a Polônia. A Segunda Guerra Mundial começou. E tudo mudou.
Menos de um ano depois, a França também foi invadida e não demorou até que Rosenthal, que além de judeu era artista, verdadeiro sinônimo de subversivo, fosse preso. O camarada então passou por diversos campos de prisoneiros no país, como em Dreux, Damigny, Alençon e Tance, até chegar ao chamado Camp Gurs. Estamos falando de um espaço de internação + prisão de refugiados situado perto dos Pirenéus, no sudoeste da França, convertido em um campo de concentração para judeus de qualquer nacionalidade que não fosse a francesa, tudo como parte do armistício entre os ocupantes nazistas e a chamada França de Vichy, Estado Francês liderado pelo Marechal Philippe Pétain.
Na real, Gurs era um lugar no qual acabaram sendo encarcerados não apenas judeus, mas também homossexuais, prostitutas, prisioneiros de guerra, membros da resistência, jornalistas, escritores e artistas. Em resumo, todos que de alguma forma pudessem ser considerados ameaças ao regime. Justamente por isso é que existia, em lugares como este, uma certa “liberdade” para a expressão cultural.
Músicos podiam tocar, pintores faziam seus quadros e desenhistas, bom, podiam desenhar. Foi aí que Rosenthal fez então seus três trabalhos: além de Mickey au Camp de Gurs, ele também escreveria e desenharia La Journée d’un Hébergé (em tradução literal, O Dia de um Hóspede, de 1940) e Petit Guide à travers le Camp de Gurs (Pequeno Guia Através do Campo Gurs, de 1942).
As obras permaneceram sob custódia do governo francês durante muitos anos, principalmente porque, em 1942, o artista acabou sendo deportado para a Polônia, eventualmente indo parar apenas e tão somente em Auschwitz, onde foi morto assim que chegou, aos 27 anos.
Não se sabe nada sobre COMO diabos os três livros ficaram conservados e nem ONDE, mas o fato é que em 1978 eles foram doados para o Centre de Documentation Juive Contemporaine (Centro de Documentação Contemporânea Judaica), ganhando DE FATO notoriedade nos anos 2000. Primeiro em 2012, quando saiu MetaMaus, livro que “desconstrói” o famoso Maus de Art Spiegelman, dando ainda mais detalhes sobre a história, incluindo entrevistas com sua família. Ali, o autor menciona Mickey au Camp de Gurs não como influência direta, já que ele não conhecia na época, mas como sendo uma das HQs mais antigas do mundo sobre a tragédia nazista.
Dois anos depois, o historiador Joël Kotek e o jornalista Didier Pasamonik compilaram as obras e editaram, enfim lançando oficialmente pela editora Calmann-Lévy, em parceria com o Mémorial de la Shoah, museu dedicado ao Holocausto em Paris.
Este ano, quando Mickey completa seus 90 anos, a obra voltou ao centro da discussão principalmente por conta do trabalho de Alister Wedderburn, pesquisador do departamento de Relações Internacionais da Australian National University. Além de documentar a história de Rosenthal em um artigo publicado no Millennium: Journal of International Studies, batizado de Cartooning the Camp: Aesthetic Interruption and the Limits of Political Possibility, Alister fez uma thread no Twitter apresentando a obra e que, claro, viralizou.
O grande ponto aqui é que Horst Rosenthal é uma pessoa envolta em mistério. Não existem fotografias dele, tampouco documentos pessoais — a não ser algumas parcas papeladas da época de sua entrada nos campos de prisioneiros franceses. Mas o que os pesquisadores, como Alister, se perguntam, é essencialmente para quem o autor fez seus gibis... e por qual razão.
Apenas para sua própria distração/diversão ou para ajudar a passar o tempo de seus colegas encarcerados? Talvez, numa pegada A Vida é Bela, fosse algo para distrair da cruel realidade as eventuais crianças também mantidas prisioneiras? Ele tinha planos de lançar isso depois que fosse libertado? Ou quem sabe sabia que seu destino estava traçado e quis deixar algo para as futuras gerações? Embora seja difícil responder a qualquer uma destas perguntas com o pouco que se tem sobre a biografia dele, a última pode estar ligada, sim, a uma pegada de esperança — porque suas obras, as três, têm um tom inegavelmente positivo. Em especial a do Mickey.
O ratinho, símbolo que os nazistas já tinham descrito negativamente no jornal Pomerania (1930) como sendo “o mais miserável ideal [de vida] já revelado”, é retratado como um camaradinha simples, feliz e sorridente, mas bastante inocente. Ele tem o olhar tipicamente infantil diante da realidade dura da guerra, uma espécie de “alienígena” que tenta encontrar algum tipo de sentido naquilo tudo, mas que claramente não consegue. Mickey é capturado nas ruas pelos soldados do Vichy, porque não tinha papeis de identificação consigo. “Documentos? Não tenho, sou internacional”, responde ele ao policial. “Ah, um estrangeiro! Venha comigo”, completa o oficial.
Levado diante de um juiz, ele então é interrogado, deixando os homens da lei perplexos ao revelar que não tem mãe, mas apenas um pai: Walt Disney. Surge a suspeita de que ele seja judeu (embora nem saiba do que raios estão falando) e até mesmo comunista, então Mickey acaba sentenciado a ir ao Camp Gurs.
Uma vez no local, ele passa a enxergar a realidade de regras duras e repressivas (também conhecidas como CENSURA), burocracia, informações falsas, além de condições precárias de alimentação e acomodação, com o seu olhar doce e deslumbrado, ainda que ligeiramente crítico. Não existe violência explícita, nem no texto nem nas imagens. Mas fica clara a brutalidade nas entrelinhas, como quando ele pergunta a alguém o que está cozinhando numa panela em um fogão improvisado: “é uma sopa que mistura nabo, alcachofra, abóbora, pão amanhecido, pequenos pedaços de madeira, alho-poró...”.
Ao final, cansado de tudo aquilo, Mickey decide que, não importa onde diabos fica Gurs, aquele lugar não é pra ele. “Então, como não sou nada além de um desenho, um me apaguei dali com uma borracha”. E eis que ele então parte de volta para a América.
Um final feliz, por mais que o de Rosenthal não tenha sido, que sobreviveu para MAIS UMA VEZ tentar fazer com que as novas gerações NÃO COMETAM OS MESMOS ERROS. Pra quem manja de francês, já que a parada nunca foi lançada fora do país e em outra língua, dá pra ler na íntegra AQUI.
Em tempo: apesar de parte de seus escombros permanecerem como uma espécie de memorial, hoje o local onde antes estiveram as cercas de Camp Gurs tem uma floresta crescendo. A vida, de alguma forma, dá um jeito de florescer onde a morte um dia tomou conta.