A artesã dos mundos de Warcraft | JUDAO.com.br

Em visita ao Brasil, a escritora Christie Golden fala ao JUDÃO sobre sua relação com os jogos, com os jogadores… E com as jogadoras

Depois de ter recém-completado 51 anos de idade, no final de novembro, a norte-americana Christie Golden sentia como se estivesse recebendo seu presente de aniversário atrasado nos primeiros dias da Comic Con Experience, realizada no começo de dezembro em São Paulo. Sorriso franco no rosto, ela se declarava encantada com a receptividade dos fãs brasileiros, que se acumularam em uma considerável fila no estande da editora Galera Record para que ela assinasse as cópias de sua obra mais recente, World of Warcraft: Thrall – Crepúsculo dos Aspectos, que tinha acabado de chegar ao mercado brasileiro. Trata-se de apenas um dos oito livros ambientados no universo do famoso MMORPG escritos por ela, sete vezes best-seller do New York Times.

Ao longo de seus quase cinquenta romances, Golden adquiriu bastante experiência com universos expandidos de franquias de fantasia/ficção científica. Já escreveu Star Trek (da série clássica e também da Nova Geração e, principalmente, de Voyager), Star Wars (a trilogia Fate of the Jedi) e até alguns contos de Buffy e Angel (beijos, Renan!). Mas foi nos livros inspirados em linhas de jogos que encontrou seu caminho. Assim que tive a chance de sentar com ela para um papo exclusivo, concedido nos camarins da CCXP, a primeira questão foi justamente se escrever livros baseados em jogos de videogames seria uma espécie de “vingança”, trazendo de volta os leitores que os jogos eletrônicos teriam roubado dos livros.

“Imagina”, disse, rindo, para depois completar afirmando que acredita que existe um ponto de cruzamento entre as mídias. “O público vai migrar de uma pra outra e então voltar, formando um ciclo. Eu acredito que as pessoas que gostam do produto original – o jogo, o filme, a série de TV – vão ficar bastante interessadas em ler um livro e conhecer em profundidade, com detalhes, outros aspectos da ambientação. Especialmente se estivermos falando de um game, que é algo que os jogadores ajudam a construir”, explica. “Eles lutam lado a lado com aqueles personagens. Acho que isso só amplia a experiência que você pode ter no jogo. Em uma partida do jogo, por exemplo, participar de um julgamento [como em Crimes de Guerra] seria algo chato demais, ficar ali sentado, esperando as coisas acontecerem, as pessoas falando. Mas num livro, pode ser algo diferente, bem mais excitante”.

christiegoldenMas, então, esta relação mais próxima, esta sensação de pertencimento, de construir um cenário, não causaria um tipo de pressão criativa sobre o seu trabalho? Afinal, se eu sou responsável por ajudar a criar aquela história no dia a dia, eu posso achar que sei mais do que ninguém sobre ela? Christie afirma que sim, a pressão existe (“as pessoas que jogam os jogos originais criam uma conexão com os personagens, com este mundo, é algo muito claro para eles”), mas que ela aprendeu a lidar bem com isso. “Por vezes os fãs não têm exatamente a visão do que eu quero fazer com aquele personagem no futuro, então podem não entender totalmente a minha intenção aqui ou ali. Mas até o momento, a maior parte dos meus leitores parece entender e gostar do que estou fazendo com os personagens”, explica.

Essencialmente, sua relação é direta com o departamento de desenvolvimento criativo da Blizzard [desenvolvedora de WoW], que é uma equipe diferente daquela que cria as missões, por exemplo. É o time de responsáveis pela criação das histórias maiores, pelo universo de World of Warcraft como um todo, pelo planejamento a longo prazo. A escritora conta que, em alguns casos, eles têm planos específicos para um determinado livro e já chegam com um esqueleto simplificado que querem que ela desenvolva. “Mas, em outros casos, sentamos ao redor de uma mesa por três horas discutindo cada aspecto – e estes momentos, eu adoro, são ótimos. E eu sempre sugiro coisas, por mais que o pensamento deles já venha pronto”, diz, aos risos. “E por mais que eles digam ‘hum, não sei se vai funcionar’, eu sempre digo ‘deixem-me tentar, se for o caso a gente retrabalha nisso depois’. E até o momento, eles concordaram com todas as minhas soluções criativas”, diverte-se, orgulhosa.

A própria Golden admite que um dos motivos para a sua taxa de acerto reside justamente no fato de que ela joga World of Warcraft de verdade. “Aliás, é o único jogo que eu jogo”, admite, resignada, justificando-se com a falta de tempo (a presença de um executivo da Blizzard na sala talvez tenha ajudado também). “Foi o primeiro do gênero que joguei, primeiro e único. Eu gosto muito do jogo, fiz uma verdadeiro mergulho graças a um amigo que sabia que eu estava trabalhando num livro sobre Warcraft, o primeiro [World of Warcraft: Rise of the Horde, inédito no Brasil]. E eu me aprofundei e adorei, me apaixonei. E liguei para o meu agente e disse que ele tinha que ligar para a Blizzard e pedir: ‘por favor, a Christie quer fazer mais livros neste universo’ (risos)”.

O mais recente livro de Golden lançado no Brasil

O mais recente livro de Golden lançado no Brasil

Ela ainda fez questão de ressaltar que, nos livros, faz referências diretas a acontecimentos que vive nos jogos. “Em um livro, mencionei uma árvore atingida por um raio – e então alguns leitores disseram ‘ei, eu conheço esta árvore, eu sei exatamente onde ela fica’. Então, antes de escrever qualquer cena muito importante, eu faço meu login e, bom, ando por aquele cenário em particular. Para que eu possa descrevê-la de maneira que a experiência seja mais rica”.

Em 1991, a autora foi uma das responsáveis pelo lançamento da linha de romances ambientados no mundo de horror-gótico Ravenloft, uma das expansões do RPG de mesa Dungeons & Dragons. E foi em seus livros, por sinal, que surgiu o arquétipo de personagem do elfo-vampiro, logo depois incorporado ao jogo e que se tornou bastante popular entre os jogadores. Este tipo de coisa pode acontecer na relação com a Blizzard? “Claro. Aliás, já aconteceu”, responde com um sorriso de canto de boca. “O cavalo de Arthas [Príncipe de Lordaeron e que, mais tarde, se torna o senhor das trevas conhecido como Lich King, principal vilão de WoW], chamado Invincible, por exemplo, é criação minha. A mãe dele, que ainda vamos conhecer, também. Tenho muito orgulho quando estas coisas acabam incorporadas ao jogo de alguma forma”.

No entanto, em um dos pontos de cruzamento da franquia ela, de fato, não estão envolvida: no caso, no longa-metragem live-action, planejado para ser lançado em 2016. “Não, não tenho nenhuma relação com ele”. No entanto, Golden conta que já viu alguns materiais em primeira mão e que “até agora foi simplesmente incrível”. Para ela, o diretor Duncan Jones [de Contra o Tempo, com Jake Gyllenhall] captou tudo que o que ela e os jogadores “mais amamos neste mundo e, até agora, eu concordo com todas as decisões que ele tomou. Isso vai ser uma coisa grande, estou realmente empolgada”.

Já que Christie Golden, a autora, também é Christie Golden, a jogadora, faz sentido que ela opine, pelos dois lados, a respeito da participação feminina nesta comunidade. “Acho que até pelo aspecto de imersão na história, particularmente, World of Warcraft tem sido um jogo que atrai bastante o público feminino”, defende, afirmando ainda que se trata de uma trama tão imensa que pode incluir os mais diferentes tipos de histórias dentro dela. “Eu, inclusive, já participei de grupos em que mais da metade dos jogadores eram mulheres. Existem grupos e organizações formados apenas por garotas”.

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Invincible & Arthas

“E tem mais”, resolve completar, me interrompendo, realmente empolgada com o assunto. “Tanto nesta comunidade de jogadores quanto no mercado, eu jamais fui tratada de maneira diferente por ser uma mulher. Nunca ouvi ou li alguém dizendo ‘ela não deveria escrever sobre Warcraft porque é uma garota’. Sou a única mulher escrevendo estes livros – e tenho sido recebida com receptividade e respeito”.

Querida Christie Golden, ficamos feliz que isso aconteça com você. Ficamos realmente felizes que você enxergue estas coisas ao seu redor. Talvez seja um começo. Mas está longe de ser representar a realidade. Ao menos aqui, fora dos limites de Azeroth.