Guia de sobrevivência para rinocerontes e pessoas
Você tem ido ao cinema? E ao teatro? Qual o último filme ou espetáculo que você viu? Se quiser mesmo responder, pode colar no meu twitter, @nicolasvargas, e mandar a missiva.
A peça mais recente que assisti se chama Canto Para Rinocerontes e Homens, que trata sobre o momento que a pessoa cansa de refletir, de dialogar, de tolerar, de ter que lidar com o diferente e se deixa levar pelo que a sociedade já tinha preparado para nós desde o instante que nascemos: nascer, crescer, nos reproduzir e morrer. No meio tempo, obviamente se espera que estudemos, trabalhemos, paguemos contas, casemos, traiamos e tiremos férias anualmente, se isso não for queimar o filme com o patrão.
Há controvérsias, claro!, mas nessas eu fico com Ze Frank, que hoje é o chefão do Buzzfeed Motion Pictures. Antes disso, ele fez esse vídeo, em 2013, onde explica com balinhas quanto tempo de vida a gente tem para, enfim, viver.
A sacada, somando a peça e o vídeo, é: no momento que nos transformamos em cumpridores do que já é estabelecido, nos animalizamos, abrimos mão do que nos faz humanos, indivíduos, únicos, e nos tornamos algozes do que estiver no caminho do consenso, sem questões morais nos atrasando quando cogitamos extinguir pessoas, grupos ou formas de pensar que pareçam obstáculos na marcha supostamente cheia de lógica da humanidade.
E isso tem muito a ver com a nossa vida atual.
No meio dos mil trutas e mil tretas que inundam o noticiário e as redes sociais, que parecem uma coisa só atualmente, chegamos no ponto que pessoas falam abertamente sobre EXCESSO DE DIREITOS como se fosse um posicionamento político normal, plenamente aceitável, que faz sentido, que merece ser discutido. Isso baseado em medo propagado por uma mídia que quer mais é que a gente fique em casa estatelado em frente à televisão.
Eles querem que a gente vire rinoceronte.
Quando alguma fala com a temática grotesca da diminuição de direitos cai no meu colo, lembro de um negócio que li recentemente, trecho de um discurso do Victor Hugo diante da Assembléia Constituinte da França, em 1848, sobre redução do orçamento da educação: “As reduções propostas no orçamento especial das ciências, das letras e das artes são duplamente perversas. São insignificantes do ponto de vista financeiro, e nocivas de todos os outros pontos de vista”.
Em épocas de crise, o primeiro corte é o dos “supérfluos”, de itens como cultura e ciências humanas aplicadas à educação. Do que faz a gente ser mais gente, basicamente. Aulas de Sociologia e Filosofia, por exemplo, são as primeiras a se descartar.
Segundo o filósofo italiano Nuccio Ordine, defensor ferrenho da arte e do conhecimento como direitos humanos básicos e não apenas como ferramentas para aquisição de diplomas, “quando se reduz o orçamento para as universidades, escolas, teatros, pesquisas arqueológicas e bibliotecas, a excelência de um país está sendo diminuída, eliminando qualquer possibilidade de formar toda uma geração”.
Sabe quem concorda com ele? A Sara.
Sara, 13 anos, escola municipal Brigadeiro Faria Lima, Pedra Azul, passou pela manifestação dos secundaristas da rede estadual e achou tudo muito interessante! Assista essa jóia de depoimento."Acho legal eles se manifestarem sobre a merenda. É que nem se tenho que ter o direito de ter liçao quando eu vou pra escola. Se eu não tiver, também vou querer ir para a rua participar disso. Acho super legal eles esterem se manifestando pacificamente. Sei que a qualquer momento a polícia pode chegar."Vídeo: Jeniffer Mendonça, para os Jornalistas Livres.
Posted by Jornalistas Livres on Wednesday, April 6, 2016
“...as pessoas continuam a ser pessoas e não teclas de piano em que sejam as próprias leis da natureza a tocar, mas prometendo tocar a tal ponto que se tornará já impossível desejar qualquer coisa para além do calendário”.
Esse é um trecho clássico de O Homem Irracional, do escritor russo Fiódor Dostoievski. Fala da mesma coisa que o vídeo do Ze Frank, lá do começo do texto, numa crítica ao senso comum de que seguir “as leis da natureza” são o que resta e o que deve ser feito, cumprindo o calendário que prevê nascimento, vida e morte, com umas coisas meio óbvias rolando nos intervalos.
No entanto, não é exatamente simples cagar e andar para as expectativas sociais e familiares sobre o caminho que escolhemos, uma vez que se decide não fazer o que se espera da gente, seja isso fazer um curso que muitos tagarelam que não vai te ajudar a ganhar dinheiro, largar o emprego que não suporta mais, namorar/pegar/comer aquela(s) pessoa(s) polêmica(s) ou mesmo querer conversar além da unanimidade do noticiário e das timelajes.
Como dizem os que lutam, só a luta muda a vida. E quem não luta nessa vida? Quem apenas sobrevive, quem nada com a maré, quem se deixa levar, quem abre mão de pensar, quem deixa que os outros decidam por ele o que é melhor para a própria vida, quem acha que um possível mau momento se deve ao bom momento do outro, quem perde tempo pensando demais sobre o direito alheio.
É preciso ir além, não tem outro jeito. Burlar o muro que o samba de uma nota só da fábrica de fazer salsichas do sistema construiu na fronteira entre o ser e o ter.
Acho que a gente consegue. Afinal de contas, somos pessoas ou rinocerontes?
Aliás, Canto Para Rinocerontes e Homens está em cartaz no Centro Compartilhado de Criação, em São Paulo, até 1º de Maio. Pra fechar, taí uma charge do Odyr, que resume legal o que minha incompetência levou todos esses parágrafos pra escrever.
Vai.
Posted by Odyr on Thursday, April 7, 2016