Psicodélico, minimalista, eletrônico, experimental: dá pra chamar o rock feito na Alemanha entre o final dos 60 e o começo dos anos 70 de muitas coisas. Mas “acomodado”, definitivamente, não é uma delas
No finalzinho da década de 60, a contracultura tanto dos EUA quanto da Inglaterra começava a visitar sonoridades que iam da psicodelia hippie ao pomposo, épico e ambicioso rock progressivo, passando ainda pelos primórdios do heavy metal e sua sonoridade mais dura e ríspida. Só que o que começou a surgir na Alemanha, mais nitidamente a partir do primeiro grande festival local de rock, em Essen, no ano de 1968, foi uma outra parada.
Era psicodélico, mas de um jeito diferente, porque o som que as novas bandas locais faziam era bem mais experimental e bem menos “preciso reproduzir a experiência de estar chapado”. Ao invés de flertar com o blues, buscava inspiração na improvisação do jazz, só que fazendo uso de um minimalismo que, de tão econômico, chegou a influenciar até mesmo o punk. Junte a isso uma boa dose de sonoridades eletrônicas, sintetizadores hipnóticos e até uma inexplicável pitada do groove do funk.
Pronto, a mistura fora dos padrões do rock da época tá pronta e você tem o tal do krautrock, aquele mesmo que fez David Bowie ficar perdido de amor e gravar a sua elogiadíssima Trilogia de Berlim.
Embora o gênero (que, sejamos honestos, é diverso o bastante dentro de si mesmo para poder ser chamado assim, por mais que as bandas, músicos e coletivos pudessem ser considerados uma espécie de “movimento”) também esteja associado ao nome kosmische musik (música cósmica), justamente por ter grande parte das bandas abordando temas relativos ao espaço sideral, foi a denominação krautrock que pegou.
E pensar que estamos falando de um termo que foi criado quase como uma piada pelos jornalistas ingleses assim que estas bandas alemãs começaram a fazer sucesso por lá. Justifica-se: “kraut” quer dizer “erva” ou “folhas” — o chucrute, tradicionalmente uma conserva de repolho fermentado, se chama originalmente Sauerkraut.
Mas kraut também foi um termo depreciativo que os soldados ingleses usavam pra se referir aos alemães durante a Primeira Guerra Mundial. Assim, quando estas bandas começaram a ser chamadas coletivamente de krautrock, foi meio que uma tiração de sarro (porque o “rock da erva” pode ser, como você pode imaginar, um jeito de dizer que este é um “rock viajandão”).
A gente te convida pra uma viagem pelo universo do krautrock por meio de algumas bandas. Aumenta o volume e entra no clima! :D
De longe o nome mais conhecido desta lista. Formada em Düsseldorf pela dupla Ralf Hütter and Florian Schneider, a banda foi pioneira na popularização da música eletrônica, com sintetizadores, bateria eletrônica, vocoders e o pacote completo. Com o disco Autobahn (1974), atingiram o seu ápice de sucesso comercial, com o visual de palco atual e uma sonoridade mais pop, o tal “pop robótico” que os tornaria de fato conhecidos e reconhecidos, influenciando gente pra cacete em gêneros como synthpop, hip hop, post-punk, techno, club music... “Desde os Beatles, nenhuma outra banda trouxe tanta coisa pra cultura pop”, diz o Guardian. Faz sentido.
“Não existe grupo mais mítico do que o Faust”, afirmou o músico e historiador Julian Cope em seu livro Krautrocksampler. Tamos falando de um grupo vindo da cidade rural de Wümme, que gravou um álbum de estreia (uma verdadeira colagem sonora de fragmentos musicais) cujas vendas foram uma bosta mas que, de alguma forma, os ajudou a formar uma base fiel de fãs. Foram eles que deram apoio para o lançamento do 2o álbum, So Far, teoricamente mais acessível e também um excelente ponto de partida pra quem quisesse entender o que diabos era krautrock. Tanto é que eles se tornaram uma das primeiras bandas do catálogo da Virgin Records de Richard Branson, interessadíssimo em fazer os rapazes bombarem na Inglaterra. O que era mito virou realidade, ainda que por pouco tempo, já que eles separaram no final da década de 70, para depois irem e voltarem algumas vezes, com as mais diferentes formações, ao longo dos últimos anos.
Egressos de Cologne, eles são a grande linha de frente do krautrock, considerados os pioneiros do movimento, com um som absolutamente experimental, brincando com pedaços de psicodelia, world music e funk para gerar algo que, em comparação aos seus contemporâneos, era de longe o mais inacessível. Esqueça o tradicionalismo aqui. Sabe aquela coisa de que cada disco tem que ser diferente do anterior? Os manos do Can levavam isso BEM a sério, explorando sempre territórios pelos quais não tinham passado ainda. Sugiro ouvir o disco duplo Tago Mago, de 1971, uma loucura pouco convencional com baterias meio jazz e guitarras nitidamente improvisadas. Uma loucura. Daquelas boas de ouvir, ainda que não se entenda na primeira escutada.
Formada por dois ex-integrantes do Kraftwerk, Klaus Dinger e Michael Rother, talvez estejamos falando da integrante desta lista que teve menos tempo de duração. Mas, além de ter inspirado diretamente Heroes, do David Bowie (o disco e principalmente a faixa-título), é possível dizer que formações tão diversas como Sonic Youth, Hawkwind (de um certo Lemmy) e Stereolab sequer existiriam se não fosse por eles. São conhecidos principalmente pelo Motorik, nome dado pela imprensa especializada à moderada batida 4/4 que se repete ao longo de toda a canção, desconstruindo aquela formação clássica de introdução, verso, ponte e refrão.
Coletivo de música eletrônica fundado em 1967 por Edgar Froese, que foi o único membro permanente no grupo até o dia de sua morte, em 2015, com Thorsten Quaeschning, seu sucessor devidamente selecionado, assumindo o manto do cara. Dá pra dizer que eles foram tão PIVOTAIS pra música eletrônica quanto o próprio Kraftwerk, aliás. Sabe aquele lance de “kosmische musik” sobre o qual falamos lá em cima? Não tem som mais cósmico do que estes caras nesta lista aqui. A música sempre esteve ligada, para eles, a outros ramos da cultura como literatura, pintura e até algumas formas prévias daquela tal de “multimídia”, sabe? Com discos basicamente instrumentais, eles chegaram a compor até trilhas sonoras para filmes (Negócio Arriscado, com o Tom Cruise, por ex) e joguinhos (Grand Theft Auto V).
Originalmente uma comuna de arte política na Alemanha conhecida por suas improvisações musicais de formato totalmente livre, leve e solto, acabou gerando duas bandas, a Amon Düül e a Amon Düül II — e é justamente sobre esta segunda que estamos falando aqui. Mesmo crescendo e atingindo um moderado sucesso comercial, o grupo continuava a se comportar como uma comuna, vivendo juntos, dividindo a porra toda. Das bandas aqui listadas, talvez seja também aquela que mais conversa, de alguma forma, com o que se conhece em termos de referências americanas como sendo “rock progressivo”. Baita piração deliciosa. ;)
Primeiro grande projeto de Manuel Göttsching, um dos mais proeminentes guitarristas de toda a cena krautrock, originalmente ao lado de Klaus Schulze (tecladista) e Hartmut Enke (baixista), ambos ex-Tangerine Dream. Geralmente classificados como “cósmicos” ou “atmosféricos”, seus discos geralmente tinham uma única canção, gigantesca, em cada lado do álbum — uma mais ambiental e a outra mais poderosa/dramática. E ao invés de decidir por escrever letras em inglês, e sabendo bem que o alemão não era lá muito popular no rock àquela época, a banda decidiu não fazer canções com letras, por mais que tenham tido Rosi Mueller cantando em um disco e ninguém menos do que Timothy Leary (ele mesmo!), em um outro, ainda que neste caso o verbo “cantar” seja o mais adequado.
O que Hans-Joachim Roedelius e Dieter Moebius faziam originalmente era um espetáculo de improviso musical, surgido no coletivo de arte/música de Berlim, o Zodiak Free Arts Lab, que trampava com sintetizadores, despertadores e até utensílios de cozinha pra tirar um som. Fizeram de um tudo ao longo da carreira, indo do mais do que experimental nos primeiros álbuns, passando pelo rock progressivo mais cheio de ritmo e chegando até a uma parada que soa como new age / música ambiente. Acabaram gravando dois álbuns (aka “pirações lindas da porra”) em parceria com o pioneiro músico e compositor Brian Eno.
Batizada em homenagem ao livro sagrado dos maias, a banda formada em 1969 pelo pianista Florian Fricke (que, mais tarde, abandonaria o seu sintetizador Moog pra se focar apenas no piano clássico) carregaria esta aura mística em sua sonoridade, seja na mistura de instrumentos acústicos e elétricos, seja nos temas religiosos, seja nas percussões étnicas inspiradas na América pré-Colombiana, no Tibete e em sons tribais africanos. O resultado final dá pra ser definido como “etéreo” ou, talvez, como “introspectivo”. Se tornaram uma das bandas favoritas do diretor Werner Herzog, fazendo para ele a trilha de filmes como Aguirre, a Cólera dos Deuses.
A melhor história DE TODAS — não só do tal krautrock, mas talvez até do universo das bandas de rock como um todo. Certo dia, em 1974, lá estava Manuel Göttsching, do Ash Ra Tempel, andando por uma loja quando escutou uma guitarra fodástica rolando nas caixas de som. Ele não só ficou surpreso ao descobrir que se tratava de um novo supergrupo de krautrock, The Cosmic Jokers, formado por diversos grandes nomes da cena, como quando descobriu que ELE era o guitarrista. Eis o que rolou: ao longo de diversos meses em 1973, o produtor Rolf-Ulrich Kaiser fez umas festinhas de ácido beeeeeeeeem selvagens no estúdio do igualmente produtor Dieter Dierks (conhecido pelo trabalho com os Scorpions). Os músicos iam na festa, ganhavam um cachê simbólico mas tinham acesso a todos os alucinógenos que pudessem consumir. Os Cosmic Jokers surgiriam daí, já que Kaiser pegou as fitas destas sessões, editou, mixou e mandou ver por seu próprio selo, Kosmiche Musik, sem que os outros músicos soubessem. Ele teria material suficiente para lançar, PASMEM, cinco discos ao longo daquele ano (embora os dois últimos tenham sido um apenas de samplers e outro só com a namorada do produtor recitando em cima de barulhos gravados ao longo daqueles meses de muita piração).