Racismo, aborto, a vida, o universo e tudo mais entre palavrões e piadas sobre peido
Embora as comédias besteirol sejam um enorme sucesso nos EUA, eu sempre as odiei. Você provavelmente as conhece: aquelas comédias carregadas de exagero e piadas de baixo calão, principalmente sobre sexo ou escatologia e bem misóginas, dependendo do filme. É um gênero que produz pelo menos um ou dois títulos por ano, como o recente Para Maiores além de outros mais conhecidos como Todo Mundo em Pânico, Espartalhões, etc. etc. etc.
Foi enorme e relutante a minha surpresa quando eu descobri que alguém poderia colocar conteúdo pensante nisso. E isso aconteceu com Kevin Smith, hoje um gordo que faz inúmeros podcasts, lança alguns projetos envolvendo seus dois mais conhecidos e amados personagens Jay e Silent Bob, faz filmes mais ou menos, enche o saco no Twitter e tem uma filha adolescente chamada Harley Quinn.
Mas esse cara também criou o View Askewverse, um universo cinematográfico coeso e isso mais de uma década antes da Marvel Studios, e isso com filmes besteirol de baixo orçamento distribuídos pela Miramax. E é nesse universo de comédia situado em Red Bank, Nova Jersey que estão todas as coisas interessantes.
O Askewverse é formado por seis filmes: O Balconista, Barrados no Shopping, Procura-se Amy, Dogma, O Império do Besteirol Contra Ataca e O Balconista 2 e um bocado de spin-offs na televisão e em HQs. Como você pode ver, os filmes do cara sofrem com a síndrome do título brasileiro e, como você pode imaginar, nenhum material especial ou de spin-off foi lançado no Brasil.
Tudo começou em 1994 com O Balconista (Clerks), quase um clássico instantâneo que até hoje tem uma puta fama de cult por ter sido feito de forma muito crua e independente. Por exemplo, o filme é em preto e branco por motivos de orçamento, mas o P&B vagabundo e manchado acaba adicionando um bocado à estética da produção, e isso fez muito indiezinho pirar.
O filme acompanha um dia infernal na vida de Dante Hicks (o nome do personagem é intencional, duh) na loja de conveniência Quick Stop no seu dia de folga ao lado de seu melhor amigo que trabalha na locadora ao lado, Randall. Obviamente mil coisas acontecem e o filme também traz a primeira aparição de Jay e Bob Calado.
A película saiu toda do bolso do Kevin Smith que dirigiu, escreveu, produziu e até estrelou a bagaça – ele que dá vida ao Bob Calado. Ela custou pouco mais de 27 mil dólares, o que foi mais ou menos o limite de crédito de 12 cartões do diretor. Ela também se passa quase toda no interior e exterior da loja de conveniência na qual Kevin trabalhava, já que não tinha como bancar uma locação e muito menos um estúdio.
Mesmo com toda a dificuldade, o filme foi um sucesso razoável e conseguiu lançar a carreira do jovem diretor.
Cada filme tem mais significados e interpretações das situações do que aparenta, principalmente nos temas e personagens que Kevin Smith aborda e cria através destes filmes e o quanto isso é louco. Tem que saber escrever direito pra isso não dar errado.
Pra quem quiser conferir os filmes, alguns deles estão disponíveis no Netflix, já os outros você vai ter que se virar em locadoras ou nas internets. O fio condutor do Askewverse são Jay e Bob Calado: se eles estão num filme do Smith, aquela produção faz parte da coisa.
Todos os seis filmes são interessantes de alguma forma, mas o meu favorito e o melhor para se começar é O Balconista. O primeiro filme do diretor reflete toda uma geração de uma forma que só John Hughes conseguia fazer – só que nesse caso, para maiores. A trilha sonora toda é grunge e o enredo e estética refletem um pessimismo e uma falta de propósito toda própria da geração X de Kurt Cobain, que estourou seus miolos naquele mesmo ano.
Dante e Randall estão nos seus vinte e poucos anos, largaram a faculdade e estão em empreguinhos de merda porque não sabem o que fazer da vida nem o que esperar dela. Eles também não gostam de trabalhar e buscam uma satisfação imediata que nunca vem. Eles e os outros jovens ao redor deles são tomados por um dar de ombros generalizado e irrestrito para o mundo, além de um egoísmo cego.
Tá, fiz essa leitura, você acha que ela é exposta assim no filme, com discursos, trilha dramática e cortes goddardianos? NÃO! É uma piada de pinto em cima da outra! Parte da graça desse conteúdo mais interessante do filme está na sua sutileza. Dá pra pensar em pelo menos uma cacetada de filmes noventistas com a mesma perspectiva que são super sérios, sisudos e dramáticos questionando mais ou menos as mesmas coisas (o maravilhoso Trainspotting de 1996, por exemplo). E aí o cara consegue fazer isso com besteirol. É genial!
Seu segundo filme, Barrados no Shopping (Mallrats), traz um fanboy de HQs que vai passar o dia boladão no shopping depois de tomar um pé da namorada. É aquilo que você espera de um fanboy, que é intolerante quanto a tudo e a todos: passa o dia xingando a ex de vadia. Ao longo do filme, fica claro que o cara é um babaca e entre algumas conversas – inclusive com Stan Lee – cabe a ele ter a epifania de perceber que o problema é ele: ele é intolerante e misógino e que esse é o maior problema dos fanboys que reclamam de “não pegar mulher”.
Parece um tema bobo, mas nesse mundinho nerd da cultura pop, muito cara ainda se acha no direito de cagar regra e se diverte brigando por estupidez em fóruns, ao mesmo tempo em que é extremamente repelente ao sexo oposto devido a um comportamento de ódio que todo mundo percebe, menos ele.
Depois disso temos Procura-se Amy (Chasing Amy), considerado por muita gente o melhor filme do Smith, que trata sobre homofobia de uma forma que você nunca vai ver. Nele, um quadrinista se apaixona por uma lésbica – que na real não é lésbica, mas bi, ou melhor, não dá pra dizer pois sexualidade é um expectro e etc – e o diretor teve coragem de botar isso em uma personagem feminina incrível chamada Alyssa.
Toda a treta está que o cara, que não se considera homofóbico e tem amigos homossexuais masculinos, acaba descobrindo que ele é sim: sua incapacidade de lidar com a liberdade de opiniões de Alyssa assim também como sua bagagem pessoal e comportamento sexual acabam por comprometer o seu relacionamento, e ele perde o amor da sua vida por pura ignorância.
Depois o diretor resolveu tratar de um tema ainda mais sério: religião. Em Dogma, dois anjos se cansam da porra toda e resolvem causar o Apocalipse e cabe a uma mulher de alguma forma descendente de Jesus Cristo, um apóstolo negro excluído da Bíblia por ser negro e Jay e Bob Calado, pra salvar o mundo.
Só nessa patota já rola uns pé no peito: racismo abordado através do apóstolo negro, vivido por Chris Rock de forma bem divertida e também pela descendente de Jesus. Ele não fala que Jesus era casado nem nada estilo Dan Brown, mas essa é uma das formas dele de dizer que o cara, salvador da humanidade ou não, era um ser humano, com pai, mãe, tias, tios, sobrinhos e amigos e que é importante ter essa perspectiva na sua vida e religiosidade. O filme também criou o Jesus Maneiro, então vale a pena.
Enfim, dessa vez, ele mostra que religião não tem que ser um discurso de ódio, mas de amor e que ela é como um pênis: não é porque você tem um que precisa mostrar. O filme também aborda vários tabus femininos, como o aborto, e se apresenta abertamente pró-escolha.
Já O Império do Besteirol Contra-Ataca (Jay and Silent Bob Strike Back) é o mais desnecessário e meio que pode ser deixado de lado. O filme é 100% metalinguístico, e essa é sua parte interessante: é um filme SOBRE o Askewverse além de trazer uma jornada meio Odisséia e mil referências à Star Wars, contando com participações do Luke, da Leia e do Lando. É o único deles que costuma passar muito na televisão e é bem capaz que você já tenha assistido, não tenha entendido nada e tenha odiado. E aí que está: só vale a pena vê-lo tendo visto os anteriores.
E por fim temos O Balconista 2 (Clerks 2), que se passa mais de 10 anos depois do primeiro, agora quando Dante e Randall precisam encarar que já estão com mais de 30 e precisam admitir que não são mais tão novinhos e precisam começar a assumir mais responsabilidades. É bem interessante e apresenta um belo ponto de vista sobre maturidade. Além de uma briga épica sobre Star Wars e O Senhor dos Anéis.
Depois disso, o diretor fez filmes fora deste universo, todos eles bem mais ou menos: Pagando bem que mal tem, Tiras em Apuros e Red State. Nenhum vale muito a pena e além deles ele só possui Menina dos Olhos, um filme mais leve sobre a aventura de ser pai, que vai depender muito do seu gosto pessoal.
Depois de Red State fracassar nas bilheterias, Smith anunciou que vai se aposentar depois de mais um filme: O Balconista 3, que encerra a trilogia e o Askewverse, agora mostrando como estão aqueles personagens 20 anos depois. O filme deve ser lançado ainda em 2014 e eu estou empolgado.
Enfim, se você não conhece o cinema de Kevin Smith, vale a pena conhecer: é uma VIAGEM ver cinema autoral em um gênero tão estranho e preste muita atenção nas personagens, principalmente em Jay e Bob Calado, e você vai perceber muito mais do que imagina.
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