HQ de ficção científica da autora paulistana Mary Cagnin, volume único dividido em três capítulos, atingiu a meta de financiamento coletivo do Catarse e promete desafiar o preconceito
“Uma ficção científica espacial”. É assim que começa a descrever seu mais novo projeto a artista Mary Cagnin. “A trama tem elementos de tudo que eu gosto numa história, como drama, suspense e até mesmo terror. Eu queria criar uma história que fosse baseada na ficção científica, mas tivesse um toque sobrenatural”. Esta é a base de Black Silence, gibi de 80 páginas em três capítulos, com capa colorida, miolo P&B e tiragem inicial de 100 páginas já devidamente financiada via Catarse.
Conhecida por seu canal no YouTube, no qual costuma postar vídeos com processos das suas artes e até mesmo tutoriais de desenho e pintura em aquarela, a ilustradora formada em Artes Visuais conta que escreve e desenha histórias “desde que me lembro”. Uma dessas histórias, Vidas Imperfeitas, era uma HQ independente sobre Juno Omura, uma garota conhecida por ser “violenta, impaciente e impulsiva”, mas que esconde bem mais por baixo desta casca do que as pessoas imaginam. O material era tão interessante que a editora HQM abraçou a causa e publicou a série em três volumes.
Pronto, Mary já estava definitivamente picada por este bichinho do “quero ver meu trabalho publicado em papel”. Só que ela conta que, inicialmente, tinha muito mais relação com a temática do cotidiano, das relações pessoais. “Então, as minhas histórias sempre beiravam ao drama e romance. Mas conforme fui amadurecendo como pessoa e artista, decidi me arriscar em outros gêneros”.
Um destes gêneros foi justamente a ficção científica. Black Silence foi surgindo primeiro na forma de contos, conforme a autora foi definindo personagens e o universo da história. “Só depois eu criei um roteiro no formato que se encontra hoje, algo mais sucinto e objetivo, digamos”, conta ela. “Então, eu poderia dizer que muito sobre o universo da história já existe, mas não aparece necessariamente no arco da HQ”.
Todos os meus quadrinhos estão disponíveis para leitura online e gratuita. Pra mim, é mais importante que as pessoas tenham acesso e leiam minhas histórias
Com base em histórias de ficção científica com as quais mais se identificava, como Solaris, Alien, Battlestar Galactica, Doctor Who “e mais recentemente com Interestelar, que veio depois, mas me deu um panorama mais realista do que poderia ser uma história de ficção científica espacial”, ela partiu para o futuro, num mundo devastado pela guerra, num cenário distópico e pós-apocalíptico.
“Os seres humanos estão lutando pelo que restou de recursos na Terra e, ao mesmo tempo, estão explorando outros planetas, em busca de novas possibilidades. Um grupo de astronautas é enviado numa missão de reconhecimento de um planeta distante que aparentemente parece ser perfeito para habitar”, diz a autora, para depois se interromper. “Só vou contar até aqui porque senão vou acabar dando spoilers”. Ela deixa claro, no entanto, que sempre sentiu a relação do ser humano com o espaço como sendo algo enigmático e até mesmo um pouco assustador. “Eu queria passar todas essas sensações e sentimentos da minha própria relação com todas essas questões, por isso a história tem muitos elementos de suspense e terror psicológico”.
Se você acha que ela foi muito enigmática, não precisa se preocupar: o capítulo inicial da história está devidamente publicado online, para dar um gostinho do que vem por aí. Dá pra conhecer um pouco de Lucas Ferraro, especialista em EXOBIOLOGIA (estudo das origens, evolução, distribuição e futuro da vida em um contexto cósmico) que estava preso, com o trabalho de toda uma vida arruinado, e acaba ganhando uma última — e única — chance para se reerguer, como parte da tripulação de uma missão que vai viajar no tempo-espaço. “Você deixa de existir por alguns momentos. Pode ser um pouco... turbulento”, diz seu colega de equipe, Peter, sobre este tipo de aventura. No comando do time, está a comandante Neesrin Ubuntu, uma mulher intensa e de personalidade muito forte, que inicialmente tem um quê de Amanda Waller. “Ela não tem uma reputação à toa, meu chapa”, descreve novamente Peter.
“Todos os meus quadrinhos estão disponíveis para leitura online e gratuita”, afirma Mary. “Pra mim, é mais importante que as pessoas tenham acesso e leiam minhas histórias”. Ela explica que publicou o primeiro capítulo de Black Silence no começo do ano porque estava, inicialmente, sem motivação para continuar a produzir a história. “Divulguei o que já tinha pronto pensando mais em como o feedback dos meus leitores poderia me animar a voltar a produzir. É mais interessante pro leitor apoiar uma história com a qual ele já teve o primeiro contato, estabeleceu uma conexão, e pode (ou não) querer ler a continuação”.
Trabalhando sozinha (“meu trabalho é muito autoral e a minha relação com os quadrinhos que produzo é bem pessoal”), ela diz que adora cobrir todas as etapas da produção, desde roteiro, pesquisa e criação de personagem, até o desenho e a finalização. Mas só sentiu o baque que é fazer ficção científica, um gênero no qual grande parte do público é bem resistente à participação feminina, quando a campanha estava no ar. “Quando decidi fazer ficção científica, não pensei sobre isso, pra dizer a verdade. Eu sabia o que eu queria fazer, e é isso o que me move no geral”, revela. “Claro que me senti insegura, eu não tinha certeza sobre o que eu estava criando, tudo era novo pra mim, mas então me dei conta que não existe certo ou errado, e o mais importante mesmo era criar uma boa história, independente do gênero, e esse continua sendo meu foco”.
Mas ela leva “na boa” e entende que, no fim das contas, não está fazendo quadrinhos para ESTAS pessoas, mas sim pra quem está disposto a enxergar além do status quo. “Eu faço quadrinhos como forma de me expressar e de passar uma mensagem, e não pra agradar as pessoas exclusivamente. Se as pessoas gostam, isto é ótimo, quer dizer que de certa forma estou no caminho certo, mas ninguém é obrigado a gostar”. Para as pessoas que se sentem incomodadas com o que ela está criando apenas pelo fato de ser mulher, fica aí um “só lamento”. Porque, como ela mesma faz questão de enfatizar: “Isso não vai me impedir de publicar uma história. E nem deveria impedir ninguém”.