Banda alemã, conhecida pelas letras inspiradas em autores como Tolkien e Michael Moorcock, apresenta Beyond The Red Mirror, um ótimo álbum conceitual com história 100% autoral
É fato que temas de fantasia não são lá grande novidade para os power metallers germânicos do Blind Guardian – já que seus integrantes, em especial o vocalista e principal letrista Hansi Kürsch, são apaixonados por este gênero literário e já fizeram dezenas de canções sobre grandes obras como O Senhor dos Anéis e A Guerra dos Tronos. Álbuns conceituais também são um terreno conhecido para eles – que o diga o magistral Nightfall In Middle-Earth (1998), inteiramente inspirado no Silmarillion de Tolkien.
O que é, honestamente, o grande destaque do recém-lançado Beyond The Red Mirror, seu décimo disco de estúdio, é que estamos diante de um álbum conceitual e ao mesmo tempo de uma história totalmente original, desenvolvida por Hansi como uma espécie de continuação da trama apresentada em 1995, nas canções Bright Eyes e And The Story Ends, do álbum Imaginations From The Other Side.
A aventura que permeia o álbum retoma o tema do garoto que se deparou com um outro mundo, do outro lado do espelho, e decidiu não pular para dentro dele. Uma espécie de “o escolhido”, similar àquele do mito do Rei Arthur do qual a banda também gosta bastante, o menino cresceu – mas se vê, vinte anos depois, procurando outras entradas para este universo paralelo, numa mistura de fantasia com ficção científica. O caso é que os espelhos que servem como portões estão todos selados. Restou apenas um: o espelho vermelho. Que deve ser encontrado a qualquer custo. E se o protagonista deixou de fazer esta viagem por medo, dá para dizer que a última coisa que este quarteto teve com Beyond The Red Mirror foi medo de saltar para um outro mundo. E ousar.
Não se deixe enganar: lembra de A Twist in The Myth (2006), disco cujo primeiro single, a modernosa Fly, parecia representar bem pouco do que era o restante do álbum? O processo se repete aqui, mas às avessas. O primeiro single, Twilight of The Gods, é o mais puro Blind Guardian clássico, acelerado e melódico, pra bater cabeça, refrão pra cantar junto – assim como é a igualmente boa The Holy Grail. Ambas prestam tributo ao passado, mas não são o reflexo mais certeiro do que se esconde por trás do espelho vermelho.
Se eu tivesse que comparar Beyond The Red Mirror com algum disco anterior da banda, seria com At The Edge of Time, justamente o álbum imediatamente anterior – já que, para mim, o novo soa como evolução absolutamente natural da bolacha lançada em 2010. “A força power metal de Imaginations from the Other Side + a pompa épica de Nightfall in Middle-Earth + o respiro progressivo de A Night at the Opera + a modernidade despreocupada de A Twist in the Myth”, descrevi eu há cerca de cinco anos. “Estamos falando, resumidamente, de um disco que busca referências no passado, o que deve agradar a parcela mais purista de seus seguidores, mas sem se tornar saudosista de maneira pedante”. Pois é. Beyond The Red Mirror é isso tudo elevado ao quadrado.
Foram nada menos do que três corais (das cidades de Budapeste, Praga e Boston) e duas orquestras, cada um com cerca de 90 músicos. É talvez o lançamento mais épico, bombástico e megalomaníaco da banda. Mas composto com requinte, inteligência e peso o suficiente para que soe como algo à toa, forçado, exagerado. É, essencialmente, um disco de heavy metal. Mas que sabe flertar com a música clássica e usá-la a favor da porradaria e, claro, de uma boa história.
The Ninth Wave, o colosso que abre o disco, é de longe uma das músicas mais elaboradas que estes sujeitos já fizeram em muitos anos – e a prova de que esta banda, a banda de hoje, estaria tranquilamente apta e madura para a trilha de O Senhor dos Anéis sobre a qual tanto se falou lá no começo da obra de Peter Jackson.
A faixa tem de tudo: Hansi mostrando um alcance impressionante e uma interpretação de tirar o chapéu, do mais agressivo e rasgado ao mais melódico; tem aquele riff de guitarra clássico e obrigatório do Blind mas arrisca uma pegada mais grave e modernosa em alguns momentos – funcionando que é uma beleza; e a vibração clássica do coral reverberando e ampliando o seu poderio sonoro, sem lhe tirar a pegada heavy metal mas dando-lhe um ar sombrio, tão sinistro quanto o de Nightfall, por exemplo. Ajudar a dar clima, basicamente. Clima de trilha sonora de filme, sacou? ;)
A sensação se repete por praticamente toda a audição, até alcançar seu outro ponto alto, que rivaliza com The Ninth Wave, a igualmente poderosa Grand Parade – que, do lado contrário da música inicial, é iluminada, ensolarada, uma injeção de energia positiva, o protagonista caminhando rumo ao sol enquanto se aproximam os créditos finais.
Os violinos da orquestra ajudam a construir a intensidade do trecho da história que Hansi canta, sobre um mundo sem deuses, sem guerras, sobre não agir mais como um tolo, sobre não sentir medo das sombras nas paredes... e deixando um adeus misterioso no ar, além da menção à uma mentira. Final aberto? Digno de uma continuação?
Apesar do peso, da guitarra que cavalga acelerada, parece claramente que temos um grupo de bardos medievais, da melhor tradição da fantasia tolkieniana, que se reuniu para cantar junto e celebrar a aventura de um herói. É grandioso, é de arrepiar, mas ainda é a sua banda favorita tocando. A minha, no caso.
Beyond The Red Mirror, no frigir dos ovos, é mais do que uma continuação natural de At The Edge of Time. É, isso sim, uma espécie de teaser do tal disco inteiramente orquestrado no qual a banda vem trabalhando há anos e que, segundo consta, estaria prometido para o ano que vem. E talvez seja uma pista de como o grupo pretende conduzir sua sonoridade daqui pra frente, sem muitas regras, sem muitas correias ou fronteiras.
Se for isso, rapaz, já é um ótimo sinal. Que os bardos passem a vida procurando eternamente seus espelhos. A gente é que agradece.