O jogo dos charts | JUDAO.com.br
17 de setembro de 2018
FAKE LOVE?

O jogo dos charts

Uma campanha do fandom do BTS no Spotify e similares expõe a nova cara de um fenômeno que é mais velho do que andar pra frente no mundo da música pop — a questão aqui é COMO lidar com ele ;)

Quem assistiu ao filme 2 Filhos de Francisco deve se lembrar bem da cena: a dupla sertaneja formada por Mirosmar e Welson, mas que atendia pela alcunha de Zezé di Camargo e Luciano, tava tentando estourar a todo custo. Pra dar aquela força aos garotos, o pai deles, o tal do Francisco, levou pra rádio local uma fita com a canção É o Amor, aquela mesma cujo refrão tá tocando NESTE MOMENTO dentro da sua cabeça.

E pra fazer com que a música estivesse entre as mais pedidas da estação, toda segunda-feira o seu Francisco gastava boa parte do seu salário, comprava 500 fichas telefônicas e saía ligando, pedindo pra tocarem a música dos seus meninos. Mobilizou amigos, familiares, todo mundo pra fazer a mesma coisa. Deu certo. A canção chamou atenção na região, depois fora dela. E deu no que deu.

Sabe o que o seu Francisco fez? Ele HACKEOU o sistema. Praticamente da mesma forma que o chamado BTS Army tá fazendo, de acordo com uma reportagem do BuzzFeed News, pra garantir que disco de inéditas Love Yourself: Tear e a recém-lançada compilação Love Yourself: Answer, do grupo pop coreano BTS, estoure nas plataformas de streaming — que, nos últimos anos, se tornaram um importantíssimo termômetro para as paradas da Billboard, o instrumento de medição de popularidade mais tradicionais e importantes do mercado fonográfico norte-americano.

A estratégia do fandom do BTS foi a seguinte: os cabeças criaram um monte de contas nos serviços de streaming, Deezer, Spotify, todos os principais, e distribuíram os logins pros fãs em outros países via Twitter, Slack, e-mail, o que diabos eles tivessem em mãos. Basicamente, a ideia era tocar as faixas do álbum do BTS sem parar, em múltiplas plataformas (computador, celular, qualquer coisa que tem uma tela). Em alguns casos, rolou inclusive uma organização de doações para que alguns destes fãs pudessem pagar por contas premium e até uma recomendação de usar uma VPN que poderia ajudar a “falsificar” a localização daquele stream, fazendo com que o sucesso fosse contabilizado dentro dos EUA para efeitos de Billboard.

Um dos fãs localizados pela reportagem afirmava ter distribuído mais de 1000 logins do Spotify, mas depois que a informação de que uma matéria a respeito estava sendo produzida, rapidamente os integrantes do fandom se fecharam e começaram a dar recomendações de não se falar com a imprensa a respeito. “Eles vão distorcer suas palavras para fazer com que pareça que os fãs estão trapaceando”, afirmava um tweet em tom de aviso. Bom, sendo real esta parada da fazenda de logins e da utilização de VPNs, se você for nos termos de uso de um Spotify, por exemplo, eles proíbem tanto ceder seu login/senha para OUTREM, quanto usar login/senha de outra pessoa e igualmente qualquer tentativa de “driblar” as restrições de território da plataforma.

Então, vejam, queridos fãs, sinto ter que dizer isso pra vocês, isso é SIM trapacear. É manipular dados. É usar “brechas” do sistema. É tipo aquela galera da turma dos influenciadores digitais que “compra” seguidores. E é tipo as gravadoras sendo acusadas de manipular os números de vendas de alguns artistas que eles gostariam de ver estourando muito mais do que estouraram de fato, mesmo depois da implementação do sistema de códigos de barras e demais estratégias da Nielsen SoundScan para medir de maneira mais correta este mercado. Tá arrebentando na Billboard? Ah, então cada vez mais gente vai ver, cada vez mais gente vai curtir, e vou retroalimentar esta bola de neve aqui.

Mas se você trapaceia, tá errado. E aí como diabos a influência / relevância da sua banda favorita pode ser real? O quanto aquele número 1 é realmente dele e não de um montão de números falsos? Talvez você esteja atrapalhando e não ajudando seu ídolo? Aliás, talvez você não esteja ajudando a criar um FALSO ídolo?

Isso é SIM trapacear. É manipular dados. É usar “brechas” do sistema. É tipo comprar seguidores, é tipo uma gravadora inflar números

Desde 2012, a Billboard passou a incorporar os resultados de streaming na sua contagem e, em maio deste ano, anunciou em termos PRÁTICOS como isso passaria a ser contabilizado para o Hot 100 (sua parada de singles) e para o Billboard 200 (dos álbuns mais quentes). Considerando um Spotify Premium ou Apple Music da vida, 1.250 execuções digitais das canções equivaleriam a uma venda de disco. Já nos serviços gratuitos, o número sobe pra 3.750. O que aconteceu em maio? Love Yourself: Tear tava em primeiro no Hot 200. O que aconteceu em setembro? Era Love Yourself: Answer que tava em primeiro na mesma lista.

Vamos lembrar ainda que este não é o primeiro caso similar, já que em maio do ano passado, um grupo de fãs de Harry Styles se organizou mais ou menos da mesma forma, VPN em mãos e a porra toda. A ideia era contar com a ajuda de fãs do mundo todo pra garantir que tanto o single Sign of the Times quanto seu álbum solo homônimo fossem loucamente ouvidos por contas com IP norte-americano, garantindo sua presença em massa nas paradas. Eles até criaram um Tumblr repleto de dicas sobre como fazer o trabalho de Harry bombar no streaming, nas rádios (em especial naquelas que hoje aceitam votações via Twitter, Instagram, Snapchat e afins), na TV, no YouTube e até incentivando aqueles que tivessem uma grana extra a comprar a música via iTunes e distribuir como “presente”, por meio de uma bem-organizada e complexa campanha.

O quanto os resultados podem ser DE FATO atribuídos ao trabalho organizado destes fãs? Difícil dizer, sem ter mais informações detalhadas a respeito. Por exemplo: tanto a Nielsen quanto a RIAA (Recording Industry Association of America) afirmam ter ferramentas para desconsiderar este tipo de malandragem em suas medições, mas nenhuma das duas revela seus métodos. O mesmo vale pra própria Billboard, que se recusou a comentar tanto este caso quanto a descoberta, do site de notícias norueguês DN, de que o Tidal estava inflando os números de audições de artistas como a própria Beyoncé em sua própria plataforma...

No entanto, a gente quer levantar OUTRO jogo aqui: e se a combinação dos grupos de fãs do BTS não envolvesse VPN e fosse apenas e tão somente “escutem este disco sem parar, como se não houvesse amanhã”? Se o fã passa o dia indo e voltando em todas as 26 músicas da compilação, vai, deixando o negócio tocando enquanto lava louça, vai na academia, dorme? E aí? O quanto isso pode ser considerado manipulação do sistema também? Seria mais ou menos do que aquilo que o seu Francisco fazia, só que adaptado pra realidade digital? Ainda assim, como medir o que é ou não mais ou menos popular sendo que 1 fã pode se multiplicar por mil cliques no site, mil streams, mil ligações?

“Superfãs de grupos pop fazem este tipo de coisa há muito tempo”, afirmou Mark Mulligan, diretor da empresa de análise digital MIDIA Research, pro BuzzFeed News. “Mas se um superfã decidisse ouvir sem parar uma música, isso pode ser considerado falso? Se sim, QUANTAS vezes ele teria que ouvir uma mesma música continuamente até que isso fosse considerado falso?”.

Excelente questão. ;)

Em novembro do ano passado, quando o BTS se apresentou no palco do American Music Awards — premiação que, diferente do Grammy, não tem seus vencedores escolhidos por meio de um corpo de jurados mas sim pelo público, que atualmente vota pelo site para definir quem é que vai sair com a estatueta, eu mesmo escrevi aqui: “a gente até poderia discutir sobre o quanto isso pode ‘distorcer’ os resultados por causa da atuação desenfreada e maníaca dos fandoms, mas o fato aqui é: os AMAs se focam no que é POPULAR. Esta é a ideia do prêmio. Pode reclamar, pode chiar, pode bater o pézinho”.

O BTS americano

Mas vejam vocês: sim, o exemplo do seu Francisco e seus dois filhos famosos que eu usei lá no começo do texto, claro, é bem extremo, é um pai fazendo de tudo pra que o mundo enxergasse um talento que, até aquele momento, só ele via. Só que, tal qual o seu Francisco, muito antes desta coisa toda digital, de redes sociais, streaming e afins, já tavam lá fazendo a sua parte, passando a mão no telefone sem parar.

Em outubro de 1990, dois dias depois da MTV Brasil entrar no ar, eis que estreava por aqui a versão tupiniquim do Dial MTV, o nosso eternamente lembrado Disk MTV. Qual era a ideia? Simples: tinha lá um número de telefone pro qual você discava pra pedir o seu clipe favorito. Os dez mais votados iam ao ar no final do dia.

E se eu te contar que Larger than Life, single dos Backstreet Boys lançado em 1999, ficou nada menos do que TRÊS meses em primeiro lugar? Sim, isso aí. “Eu era uma destas, ligava todos os dias. Eu e mais três amigas, a gente fundou um fã clube de BSB e combinava de ligar sempre, pra ter os nossos queridinhos em primeiro lugar por mais tempo”, me confessou uma antiga fã dos caras que não quis se identificar, hoje com mais de 30 anos de idade. Você consegue imaginar o que diabos teria acontecido se existisse Facebook nesta época? WhatsApp?

E isso durou por bem mais de uma geração, porque em 2010, na 16ª edição do VMB, os coloridos do Restart foram lá e saíram com cinco troféus, consagrados nas categorias Artista do Ano, Clipe do Ano, Hit do Ano, Revelação e Pop. O grande lance? Era tudo votação popular, pelo site da MTV. Mas quando foram receber a parada, no palco, acabaram sendo injustamente vaiados pela plateia de convidados presentes. “Nós tivemos muitas oportunidades de agradecer hoje. Mesmo quem vaiou, obrigado, críticas são bem-vindas”, disse na ocasião o vocalista Pe Lanza. Que culpa eles têm de ter uma base de fãs que se organizou para virar a noite, votando simplesmente sem parar? Nenhuma. Mas, ainda que os fãs do Restart não estivessem trapaceando, não estivessem subvertendo as regras do jogo e fazendo EXATAMENTE o que eles podiam fazer pelo regulamento... o quanto isso representa em termos de números pra que a gente entenda o tamanho real da base de fãs?

“Toda vez que você tem uma métrica, as pessoas vão aparecer com um jeito de manipulá-la”, afirma Peter Fader, professor de marketing na University of Pennsylvania que testemunhou no papel de especialista durante os clássicos julgamentos do Napster, em 1999, e desde então se dedicada a estudar profundamente a indústria fonográfica. “Este é um tipo de situação que convida para uma espécie de jogo”.

Isso faz parte da música pop desde que o mundo é mundo — mas hoje a gente vive em um mundo no qual o que não faltam são ferramentas para “burlar” o sistema. Hoje, dá pra ir muito além do “ligar 25 vezes num mesmo dia”. Claro, esta parada de VPN ajuda a criar uma situação que não é real, sem dúvida alguma. O grande ponto é o que se vai fazer com esta informação em tempos de big data, business intelligence e este ferramental todo. Assim como a molecada sabe bem usar este ferramental a favor dos seus ídolos, criando campanhas mais sofisticadas e elaboradas, talvez seja hora do mercado também se deixar enganar um pouco menos na hora de fazer estas medições e tirar a cortina de fumaça da frente.

Um mercado que hoje, inclusive, tem bandas que se baseiam nos resultados de um Spotify da vida pra definir seus setlists, por exemplo. E que está inclusive ativamente discutindo novos modelos, o que poderia até incluir as plataformas de streaming começarem a se tornar gravadoras/selos musicais por conta própria, abrindo espaço para artistas mais jovens? Se este mesmo mercado é tão facilmente enganado pela galera dos fandoms, digamos que tem algo de muito errado acontecendo, não é mesmo? ;)

Vamos lembrar, aliás, não é um fenômeno que se restringe à cultura pop, já que o que não falta nos últimos meses de processo eleitoral do lado de cá é fandom de C E R T O S políticos fazendo recrutamentos em massa pra responder tudo quanto é pesquisa que vê pela frente em sites, redes sociais e pans.

A pergunta sempre vai: o quanto isso se reflete DE FATO na vida real?