Ucrânia venceu o Eurovision 2016. Mas que porra é essa? | JUDAO.com.br

Com uma canção que enfureceu os políticos russos, Jamala leva a melhor naquele que é um dos maiores e mais tradicionais concursos musicais da TV mundial

Neste último sábado (14), a ucraniana Susana Jamaladinova, conhecida apenas como Jamala, SAGROU-SE a grande vencedora da edição 2016 do maior e mais duradouro concurso de música da TV mundial: o Eurovision, que acontece anualmente desde 1956. Cantando a música 1944, ela passou pelo CRIVO dos jurados e do público e teve que derrotar nada menos do que 42 participantes, cada um indicado por um país diferente.

O Eurovision é uma iniciativa da chamada União Europeia de Radiodifusão (European Broadcasting Union, que também atende pela sigla EBU), que tem exatos 74 membros ativos em 54 países essencialmente da Europa, África e Oriente Médio – mas, aqui no Brasil, a Fundação Padre Anchieta, representada pela TV Cultura, também faz parte do grupo, que reúne basicamente serviços públicos de rádio e televisão.

A ideia do Eurovision surgiu como uma forma de reunir os integrantes europeus da EBU em torno de uma programação leve e saudável, pro que chamam de família, num continente que em plenos anos 1950 ainda se recuperava das cicatrizes da guerra. Foi aí que apareceu o conceito de uma competição musical internacional que seria transmitida simultaneamente para todos os países participantes e tiraria inspiração do clássico italiano Sanremo Music Festival. A primeira edição rolou no dia 24 de Maio de 1956, na cidade suíça de Lugano, com apenas sete países participantes, cada um indicando duas canções diferentes.

Na edição seguinte, no entanto, as regras mudaram e cada país passou a ter direito de indicar apenas uma canção. Aliás, importante que se diga, aqui a coisa não gira em torno de um artista/banda, mas sim em torno da música. É a canção que vai competir e receber os votos em todas as fases, nunca quem a está interpretando — e sempre em nome do país o que, você deve imaginar, torna a coisa BASTANTE política.

Esse ano as duas semifinais e a grande final aconteceram no Ericsson Globe, em Estocolmo, na Suécia, devidamente apresentadas pelo cantor Måns Zelmerlöw, o mesmo sueco que no ano passado foi o vencedor do Eurovision com a canção Heroes — o que explica a razão de a Suécia sediar o evento em 2016 –, ao lado da humorista local Petra Mede. Quem ficou responsável pelo chamado “show do intervalo” foi Justin Timberlake, que aproveitou a ocasião para apresentar em primeira mão seu novo single, Can’t Stop The Feeling. Se liga na importância da parada: músicos costumam fazer isso em grandes eventos de grande audiência, então faz sentido. Mas é tão “maior” que, na transmissão americana, o que se viu foi um recap durante o show. Pros EUA, só depois.

Um dos eventos não-esportivos mais assistidos do mundo, o Eurovision costuma reunir uma audiência internacional média que varia entre 100 e 600 milhões de pessoas – isso, obviamente, incluindo os países que não competem, Canadá, China e EUA, que pela primeira vez pode assistir ao evento ao vivo. No Brasil, a TVE Espanhola prometeu a transmissão esse ano, mas por qualquer razão desistiu.

Para muitos países, ganhar o Eurovision tornou-se questão de honra, como no caso da Rússia, por exemplo. Uma das ambições de Vladimir Putin nestes seus 16 anos como presidente é restaurar o status de seu país no centro do mundo – e isso significa trazer grandes eventos esportivos para serem realizados por lá (Olímpiada de Inverno em 2014 já foi, a Copa do Mundo de 2018 tá chegando) e, claro, vencer a competição musical. “Eles contrataram diversos especialistas em Eurovision para trabalhar no indicado russo – incluindo Philip Kirkorov e Dimitris Kontopoulos, compositores que já fizeram diversas canções que foram apresentadas por lá” afirmou Daniel Gould, apostador especializado no festival (é sério, isso existe) para a BBC.

“Para a Rússia, é um papo muito sério, é tipo as Olimpíadas da música. Os russos amam o Eurovision. As audiências são altíssimas no nosso país”, disse Sergey Lazarev, o cantor que defendeu a nação de Putin no concurso. Mas não é só pra eles não. Na Suécia, foi realizada uma pesquisa para determinar qual a data mais importante na vida dos suecos: o aniversário veio em primeiro, seguido pelas férias de verão e depois pelo Melodifestivalen, que é justamente o concurso para determinar o indicado sueco ao Eurovision.

O Natal, tadinho, veio em quarto. ;)

Para os suecos, que produzem música pop de qualidade para o mundo inteiro desde sempre, o interesse pelo Eurovision se intensificou a partir de 1974, quando ninguém menos que ABBA venceu o concurso com a música Waterloo. Assim que ergueram o troféu, eles se tornaram famosos não apenas no continente, mas também explodiram nos EUA, sendo catapultados ao estrelato.

Outra que encontrou a fama foi uma certa Céline Dion, que representou a Suíça com Ne partez pas sans moi e levou a melhor em 1988. Sim, ela é canadense, mas na época não era obrigatório que o cantor/cantora fosse da nacionalidade do país que representava, mas apenas cantasse em uma das línguas oficiais desse país. Daí ela cantou a música da Bela e a Fera, do Titanic e o resto é história.

No mesmo ano em que o ABBA, uma jovem cantora chamada Olivia Newton-John representou a Inglaterra cantando Long Live Love. Embora os suecos tenham vencido e ela tenha ficado apenas em quarto lugar, a performance chamou a atenção do mundo. Outro que se deu bem, mesmo sem ganhar o grande título na final, foi o italiano Domenico Modugno, que apresentou a sua Volare. Porque, naquele palco em 1958, estava lançado o seu megahit internacional – você sabe, aquele do refrão “Volare, oh oh / Cantare, oh oh oh oh / Nel blu dipinto de blu / Felice de stare lassù”. Tenho certeza de que esta música está tocando na sua cabeça AGORA, provavelmente na versão dos Gypsy Kings. \o/

Não faltou gente famosa soltando a voz no Eurovision: teve Julio Iglesias em 1970 pela Espanha (Gwendolyne), teve Lara Fabian — aquela da música Love By Grace, sucesso na novela global Laços de Família — em 1988 com Croire por Luxemburgo, teve as meninas do t.A.T.u. em 2003 pela Rússia (Ne Ver’, Ne Boysia) e teve até a Bonnie Tyler (TOTAL ECLIPSE OF THE HEAAAAAAART!) em 2013 pela Inglaterra (Believe in Me).

Mesmo a hoje reclusa Enya, a moça dos gatos no castelo, na época à frente da banda Clannad, quase foi a escolha da Irlanda em 1973 com An Pháirc.

Mas, obviamente, o sucesso não é exatamente uma regra para todos os vencedores (ou participantes). Vejam o caso da banda finlandesa Lordi, que surpreendentemente faturou o Eurovision em 2006 com Hard Rock Hallelujah, até hoje seu maior hit. Foi a primeira banda de rock a ganhar o título, vejam só. O caso é que o grupo faz um heavy metal com toques de hard rock farofa, todos efetivamente vestidos como monstros de filmes de terror e letras que remetem a filmes B de terror. Ou seja: nada mais longe da fórmula mais pop do sucesso, com ou sem Eurovision para servir de currículo. Até hoje fazem moderado barulho apenas dentro do nicho dos headbangers.

O mesmo vale para o fenômeno pop Conchita Wurst, alter ego drag do austríaco Thomas Neuwirth, cujo visual barbado causou porções iguais de empolgação e polêmica mas que, infelizmente, hoje vive restrita ao topo das paradas de seu país natal. E também para a transexual israelense Dana International, que venceu em 1998, causou furor e protestos, deu de ombros e botou pra quebrar mas, alguns anos depois, desapareceu do cenário musical, sendo relembrada apenas na versão local do reality musical Pop Idol.

Política

A letra de 1944 fala justamente sobre a deportação dos tártaros, nos anos 1940, realizada pela União Soviética sob controle de Joseph Stalin depois de uma suspeita de colaboração com os nazistas alemães. Jamala ficou particularmente inspirada pela história de sua tataravó, Nazylkhan, que tinha pouco mais de 20 anos quando ela e seus cinco filhos foram enviados para a Ásia Central.

Historicamente, o Eurovision tem uma regra de não abordar assuntos políticos e evitar assuntos espinhosos. Justamente por isso, assim que a canção foi escolhida pela Ucrânia para representá-la no festival, alguns políticos russos acusaram as autoridades do país de usar a faixa para “ofender a Rússia” e “capitalizando sobre a tragédia dos tártaros ao impor aos telespectadores europeus uma falsa imagem de sua situação na Crimeia russa”.

Os russos não ficaram muito felizes com o que tava acontecendo...

Os russos não ficaram muito felizes com o que tava acontecendo...

Jamala, no entanto, já tinha afirmado que a canção é uma lembrança de sua própria família vivendo na Crimeia, atualmente um território anexado pelo governo russo – mas que as letras não falam especificamente a respeito disso. A organização do Eurovision acatou e a música seguiu na busca pelo troféu. Considerem ainda que a Ucrânia venceu este ano por um resultado apertado justamente contra a favorita Rússia, que ficou em terceiro lugar, para entender o significado simbólico que a conquista de Jamala teve para o seu país.

A cantora levou para a Ucrânia (que não participou da edição 2015) também o recorde de votação mais expressiva, com impressionantes 537 pontos. Simon Bennett, presidente do fã-clube OGAE International, dedicado ao Eurovision, afirmou em entrevista à BBC que os países que anteriormente formavam a União Soviética, aqueles que “normalmente votariam na Rússsia”, muito provavelmente votaram na Ucrânia, que vai sediar o evento ano que vem, justamente para enviar algum tipo de mensagem.

Alguém consegue imaginar qual? :P