Como enxergamos Monteiro Lobato em 2019? | JUDAO.com.br

A obra do autor vai cair em domínio público agora em 2019 — incluindo o Sítio do Pica-Pau Amarelo. Mas será que dá pra todo mundo contar estas histórias do jeito que elas REALMENTE são?

É provável que você tenha percebido uma INVASÃO de produtos do Pequeno Príncipe lá por volta de 2015. Novas traduções e edições do livro, objetos de decoração, cadernos, almofadas, copos, estampas em roupas de cama... Tudo com aquela frase chata que diz “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” – que, veja você, é fruto de um erro de tradução. Isso só aconteceu porque a obra francesa caiu em domínio público.

Ou seja: juridicamente falando, já não há mais quem responda pelo direito autoral do que foi produzido, e isso rola 70 anos APÓS a morte do autor original. Ó, pra exemplificar: J.R.R. Tolkien morreu em 1973. Isso significaria que, em 2044, O Hobbit, O Senhor dos Anéis, Silmarillion e outras obras poderiam ser adaptadas PRO QUE FOR, como for, por qualquer um. É, pois é.

Tudo isso, óbvio, na teoria, já que a Disney está mais do que preparada para garantir que ninguém faça mau uso do aniversariante ilustre do ano passado, Mickey Mouse, usando o argumento de que ele é TAMBÉM uma marca registrada da companhia, o que torna este um terreno movediço quando o assunto são direitos autorais (e o Tolkien Estate deve estar, desde já, igualmente acionando um batalhão de advogados).

De qualquer maneira, agora em 2019, tudo o que era de Monteiro Lobato caiu nessa regra. Morto em 1948, o autor produziu contos, um romance chamado O Presidente Negro e, especialmente, todo o universo do Sítio do Pica-Pau Amarelo! Narizinho Emília, Pedrinho, Cuca, Visconde de Sabugosa e todo o resto do pessoal foi PRA GALERA. E já dá pra ter uma noção de que a ENXURRADA de Sítio será forte.

Com seu lançamento previsto já pra fevereiro, por exemplo, Mauricio de Sousa fez Narizinho Arrebitado, um livro distribuído pela editora Girassol. Esse título é a primeiríssima publicação infantil de Lobato. Ali, a Mônica vira Emília, Magali é Narizinho e outros personagens que não estão na história aparecem ao final. De acordo com a Folha de S.Paulo, a publicação traz um glossário que mostra Cebolinha como Pedrinho e Louco como o Visconde. Mas outras editoras estão trabalhando em suas versões e novas ilustrações. Companhia das Letrinhas, FTD, Moderna, Globo Livros... Virou festa! :)

Mas tem uns detalhes que andam gerando um certo desconforto.

Há muuuito tempo a gente já sabe de casos bem sérios envolvendo Monteiro Lobato, incluindo racismo e eugenia (aquela mesma que virou parte importante da teoria da “pureza racial” do nazismo).

O escritor era membro da Sociedade Eugênica de São Paulo, tendo trocado cartas com um de seus fundadores DEFENDENDO a ação da Ku-Klux-Klan: “País de mestiços onde o branco não tem força para organizar uma Kux-Klan (sic), é país perdido para altos destinos. André Siegfried resume numa frase as duas atitudes: ‘Nós defendemos o front da raça branca – diz o Sul – e é graças a nós que os Estados Unidos não se tornaram um segundo Brasil’. Um dia se fará justiça ao Klux Klan (...) que mantém o negro no seu lugar”.

Como se isso já não fosse o suficiente, ele também usava uma linguagem racista para se referir à Tia Nastácia, uma mulher negra que era a cozinheira do sítio da Dona Benta. No livro Peter Pan, de 1930, Dona Benta conta para as crianças a história do menino que não queria crescer (usando de domínio público, inclusive). Tia Nastácia interrompe para fazer um comentário e aí o seguinte diálogo acontece:

– Cale a boca! – berrou Emília. – Você só entende de cebolas e alhos e vinagres e toicinhos. Está claro que não poderia nunca ter visto fada porque elas não aparecem para gente preta. Eu, se fosse Peter Pan, enganava Wendy dizendo que uma fada morre sempre que vê uma negra beiçuda...

– Mais respeito com os velhos, Emília! – advertiu Dona Benta. – Não quero que trate Nastácia desse modo. Todos aqui sabem que ela é preta só por fora.

Em um outro livro, Caçadas de Pedrinho, de 1933, lê-se:

“Sim, era o único jeito – e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros”

Esse racismo absurdo e completo da obra é MUITO preocupante.

Algumas versões ganharão adaptações: as editoras Moderna e Girassol terão textos feitos por Pedro Bandeira e Regina Zilberman, respectivamente, que devem readequar tudo. Já a Companhia das Letrinhas deixará os textos integrais mesmo. Lilia Moritz Schwarcz, autora também de uma biografia de Monteiro, defendeu: “Omitir polêmicas é colocar essas questões embaixo do tapete. Eu prefiro gerar desconfortos e abrir debates”.

A produtora Clube Filmes, conhecida pelos longas Como Se Tornar o Pior Aluno da Escola e Exterminadores do Além Contra a Loira do Banheiro, além da série Politicamente Incorreto para o FX, será responsável pelo filme O Sítio do Pica-Pau Amarelo. Estas três obras, você sabe muito bem, têm ~alguns problemas, né? Já imaginou?

Caímos aqui naquela velha discussão: publicar o original com ressalvas históricas / avisos ou adaptar pra não expor algo que já estamos carecas de saber que é nocivo e criminoso? Até que ponto esses comunicados sobre contexto social REALMENTE ajudam a ensinar sobre o que acontece ali? Como, COMO confiar que profissionais que trabalham ao lado de ~certas figuras discriminadoras podem ter a sensibilidade e responsabilidade social pra readaptar essa obra que rende dor de cabeça há tanto tempo?

Talvez, em 2019, a gente não precise CORRER assim pra lançar livros que precisam de tanta análise. Vale a pena expor crianças negras a um tipo de texto que, mesmo com mil explicações, fere quem elas são? Apagar isso completamente é um erro, sim. Como disse Jason Scott ao JUDÃO.com.br recentemente: “se o passado é apagado, indivíduos podem moldar o presente do jeito que quiserem”.

Mas precisamos pensar no melhor e mais produtivo jeito de apresentar esse tipo de passado, ainda que dentro do tal contexto. A memória afetiva de quem leu Monteiro Lobato e não se afetou com aquelas falas não pode ser maior do que o sofrimento de quem vive as mesmas violências há séculos.