Um dia ruim | JUDAO.com.br

Coringa, o filme, anda numa corda bamba de significados, e se orgulha muito de chegar no final sem pender para nenhum lado. Nenhum lado mesmo.

SPOILER! Quando cercado por gângsters, mas com o ás na manga, o Coringa faz uma pergunta. “Quer saber como eu consegui essas cicatrizes?” E ele conta uma versão deturpadinha e insossa (para os padrões Coringa) de uma história de origem. Muita gente pensou “ah, é isso mesmo? Ok”. Algumas cenas depois, ele faz a mesma pergunta. Mas ele conta uma história diferente.

Um pouco do que o Christopher Nolan e o Heath Ledger estavam fazendo em O Cavaleiro das Trevas, em 2008, ficou então mais claro. Não existe história de origem. Assim como “não existe” ideologia, objetivo, ordem, lógica. Naturalmente todas essas coisas estão lá, mas estão distorcidas por uma força da natureza, um abismo pragmático que é perfeitamente simbolizado no olhar vidrado de Heath Ledger – olhos que observam do fundo de dois buracos negros, maquiagem aplicada com pressa, só para marcar que você pode estar procurando nesses olhos algo que não está lá.

E aí a roda do tempo passou, outro Coringa foi necessário. E quando todo mundo conseguiu esquecer esse, mais tempo passou. E ao invés de criar mais uma caricatura mal calculada, o pessoal botou a mão na consciência. Queriam algo novo, algo fresco, algo impactante. A Maravilhosa Concorrência tá fazendo bilhão atrás de bilhão. Não dá mais para fazer desfeita.

Então porque não chamar o, discutivelmente, melhor ator vivo em ação? Porque não fazer aquela pergunta que já cansamos de fazer, “o que aconteceu para que um ser humano virasse essa tempestade de desespero?”, e criar uma nova lenda cinematográfica?

Todd Phillips chamou essa pra si, egresso de sucessos questionáveis como Starsky & Hutch: Justiça em Dobro e Escola de Idiotas, assim como de sucessos inquestionáveis, como a trilogia Se Beber Não Case. Produziu, co-roteirizou e dirigiu essa nova versão do Coringa que chegou para botar o mundo do cinema (e, surpreendentemente, de outras áreas também) em chamas.

Seguimos Arthur Fleck, que encarna o corpo de Joaquin Phoenix como um demônio hesitante. Sua rotina de palhaço é triste, enfurecedora e deprimente. Todd Phillips e Gotham City pisam em todos nesse filme, mas é em Fleck que decidem pisar com mais convicção e mais vigor. Ganhou do Universo uma doença mental não identificada, que lhe rendeu uma passagem também não identificada pelo sanatório público. O tique nervoso de rir sem controle pode ou não ser fruto de uma infância abusiva. Estamos diante de um pobre coitado que não é nem um pouco confiável em termos de narrativa, dado que parte do que vemos é uma ilusão. Até a infância abusiva pode não ter existido.

Fleck é um ser humano feito de pedaços pouco saudáveis de sanidade, de ajuda social, de amor familiar, e o que ele quer é, simplesmente, pertencer. Até que um dia ruim acontece. Ele mata três babacas no metrô – dois por legítima defesa, um só de sacanagem – e esse é o primeiro degrau rodamoinho abaixo para onde Fleck vai nos puxar, trazendo Gotham City junto.

O filme como um todo começa então a andar numa corda bamba de significados, e se orgulha muito de chegar no final sem pender para nenhum lado. Nenhum lado mesmo. A demanda de Fleck por uma família real – concentrada na ideia de que pode ser filho de Thomas Wayne – é baseada nos devaneios de sua mãe. Ou na realidade de que Wayne é mesmo seu pai. Só que ele é adotado. O que pode ser mentira. Não sabemos? Não importa. Nada importa.

O homem que “iniciou” um movimento, muito mais uma explosão de raiva contida nas pessoas oprimidas por um sistema corrupto, sujo e ineficaz, diz de diversas formas diferentes que não acredita em absolutamente nada. Só no seu direito de matar, a si mesmo, a sua mãe, a quem for. O povo, que é atiçado por um triplo assassinato a “reivindicar uma mínima existência decente” vão para as ruas para anarquizar e destruir, protegidos por máscaras. Acabam criando o Batman. E logo depois, elevam seu “líder” a uma apoteose gloriosa, que também não tem como significar nada.

Arthur Fleck é um sociopata niilista diferente de outros memoráveis puramente por conta do filme em que está inserido. Sua jornada não tem nem um começo, nem um fim. Não tem um propósito explosivo e horroroso como Alex DeLarge, que afasta um pouco a cortina sobre a opressão governamental e as fraquezas das estruturas da sociedade. E nem mesmo tem o propósito de não ter propósito, uma ironia final onde a inaptidão e a obsessão revelam a piada que é a sociedade à sua volta, como Travis Bickle.

O filme como um todo começa então a andar numa corda bamba de significados, e se orgulha muito de chegar no final sem pender para nenhum lado. Nenhum lado mesmo. (...) Não importa. Nada importa.

Fleck, já no final de sua metamorfose, pega uma câmera para finalmente revelar ao mundo uma fagulha de sua alma. Uma migalha que seja do que raios está fazendo. Mas a câmera corta antes de ouvirmos qualquer coisa – porque esse é o tipo de filme que temos em mãos. Não só é alguém que não tem nada a dizer, mas quando o tem, isso precisa ser negado.

O Alan Moore tentou humanizar o Coringa uma vez. Foi numa HQ ilustrada pelo Brian Bolland chamada A Piada Mortal. Nela, descobrimos que o que foi suficiente para transformar um marido decente, um futuro pai preocupado, um comediante fracassado no maior assassino da ficção do século XX foi “um dia ruim”. Ou pelo menos isso é o que o próprio assassino, o menos confiável dos narradores, pensa. Só que aí o herói da história, o Comissário Gordon, quebra esse argumento. Porque um dia ruim não pode criar um sociopata. Um dia ruim não pode ser desculpa para a crueldade, o egoísmo, a covardia e a insanidade.

Não é “a sociedade quebrada” que inventa o Coringa de Arthur Fleck, mas ela reage à sua existência de uma maneira caricata e imatura. As tentativas de humanização do personagem esbarram na psicopatia, na fixação doentia pela vizinha, e finalmente morrem quando ele bota a culpa de sua situação – no pai ausente, rico e opressor que… talvez tenha razão de estar defensivo e agressivo com um maluco que botou a mão no seu filho? Na sua doença mental e na sua falta de remédios (de fato uma falha do sistema)? Não, na doença mental de sua mãe. Razão pela qual ele a mata na cama de um hospital.

Sua dança mítica de transcendência… É só uma dança. A metamorfose kafkiana pela qual Joaquin Phoenix passou, numa atuação que pode (e deve) ser estudada pelos próximos anos constrói um monstrinho que não tem rumo. E isso não é necessariamente ruim.

O Coringa sempre foi um prato cheio para os escritores porque ele pode ser – quase literalmente – qualquer coisa. Se o personagem do Coringa for completamente incoerente (o que ele, até aqui, não tinha sido), há uma maneira de entender que “é parte do personagem”, queira isso seja uma desculpa tosca para “ser malucão” ou não. Mas a mídia em si, a história que estamos vendo, o ponto onde a trajetória quer nos levar não precisa “ter sido escrita pelo Coringa”. Mesmo se nosso maquinista é um lunático que não acredita em nada – nem mesmo em si mesmo – os trilhos do trem poderiam nos levar a um lugar. Qualquer lugar.

Mas o Coringa de Todd Phillips está satisfeito em chocar. Em ter uma fotografia linda e um trabalho de câmera que ajuda a valorizar o senso de isolação, de loucura e de deformidade de Joaquin Phoenix. Em ter uma trilha sonora fabulosa. Trabalhos de Zazie Beetz e de Robert DeNiro super competentes. De ter um design de produção assustador e praticamente perfeito. De ter um ator principal com uma entrega inesquecível. Um monte de qualidades excepcionais. Mas qualidades que parecem ter sido amarradas juntas por alguém que quis aprender sobre a vida usando a Wikipedia Brasileira. Aquela pessoa que faz, sem cerimônias, a elegante piada de martelar o destino trágico da família Wayne na saída de A Outra Face de Zorro.

É o tipo de filme que o próprio Coringa iria passar pro Batman ver, enquanto estivesse amarrado ao lado de Robin, se o palhaço do crime quisesse algum dia se explicar para o Homem-Morcego que – risadas – ajudou a criar.