Crianças, publicidade, HQs e um tal "projeto de lei" | JUDAO.com.br

Que na verdade não é um projeto de lei, mas sim uma resolução. E que, com o perdão da rima fácil, causou uma tremenda confusão.

Resolução 163. Os leitores habituais de histórias em quadrinhos no Brasil já devem ter se deparado com esta bendita definição pelo menos uma vez nos últimos meses. Aprovada por unanimidade pelos integrantes do CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) no dia 13 de março de 2014, a resolução se tornou protagonista de uma postagem que tomou as redes sociais de assalto logo na sequência – “governo brasileiro lança lei que inviabiliza publicações de quadrinhos no país”. Não apenas os fãs, mas também aqueles que trabalham no mercado brasileiro de HQs, entraram em polvorosa.

Calma, gente, muita calma nesta hora. É preciso esclarecer exatamente do que estamos falando – a começar pelo próprio CONANDA. Estamos falando de um órgão vinculado à Secretaria de Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), mas formado por 14 representantes do Poder Executivo e 14 representantes de entidades não-governamentais (ONGs) que possuem atuação em âmbito nacional e atuação na promoção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes. Ou seja: não, o CONANDA não é o “governo brasileiro”. Vamos passar para o próximo item?

A Resolução 163 não é uma lei. “Ela estabelece normas reguladoras, certamente. Mas não é lei. E também não há lei que remeta à ela. Também não existem sanções previstas para o descumprimento dos preceitos”, explica a advogada Juliana Pantaleão, ouvida pelo JUDÃO. Portanto, a resolução não tem status de lei, mas sim de uma espécie de recomendação – que afirma que a prática do direcionamento de publicidade e comunicação mercadológica à criança com a intenção de persuadí-la para o consumo de qualquer produto ou serviço é abusiva e, portanto, ilegal segundo o Código de Defesa do Consumidor.

As resoluções são atos administrativos normativos que partem de autoridades superiores, mas não do chefe do executivo. Assim sendo, uma resolução pode ter o seu cumprimento determinado por um decreto que venha de uma autoridade superior. No sistema jurídico brasileiro, os decretos são atos administrativos da competência dos chefes dos poderes executivos (presidente, governadores e prefeitos). Assim sendo, as resoluções podem servir como base para a análise de um julgamento e podem ser referendadas – ou não.

“A resolução é bastante restritiva, mas ela não se sobrepõe à Constituição Federal, ao Código de Defesa do Consumidor ou ao Estatuto da Criança e Adolescente, os quais admitem a publicidade infantil”, explica a diretora comercial da Mauricio de Sousa Produções, Mônica Sousa – sim, ela mesma, a filha do Mauricio, inspiração para a criação de uma certa garotinha de vestidinho vermelho. “O Código de Defesa do Consumidor, por exemplo, prevê que a publicidade infantil é abusiva apenas quando se aproveitar da deficiência de julgamento e experiência da criança. Como todos nós sabemos, uma resolução aprovada por um órgão do Poder Executivo não pode ir além do que diz a legislação aprovada pelo Congresso Nacional. Portanto, a publicidade dirigida à criança continua sujeita apenas aos limites em vigor, os quais não restringem a utilização de cores, trilha sonora, desenhos, personagens e ídolos da infância. Por outro lado, há alguns projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional que têm o objetivo de regular a publicidade dirigida à criança – importante observar que nenhum deles inclui as pesadas restrições da resolução do CONANDA”.

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Mauricio e a filhota Mônica

Dito isso, leia-se, a Resolução 163 lista os seguintes aspectos que caracterizam a abusividade: linguagem infantil, efeitos especiais e excessos de cores; trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança; representação de criança; pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil; personagens ou apresentadores infantis; desenho animado ou de animação; bonecos ou similares; promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis ou com apelos ao público infantil; promoção com competições ou jogos com apelo ao público infantil — e é aqui que a porca torce o rabo. Porque alguns destes termos são genéricos demais e podem gerar interpretação dúbia – que foi, de fato, o que acabou preocupando o mercado.

“O que fizeram foi uma norma preguiçosa e mal-escrita, que dá margem para diversas interpretações. Ao invés de atacar o problema do abuso, dos produtos danosos, resolveram simplesmente proibir tudo”, opina o professor Ivan Carlo Andrade de Oliveira, mais conhecido pelo pseudônimo de Gian Danton, roteirista brasileiro que já teve material publicado nos EUA pela Fantagraphics. “A norma foi escrita por quem não entende de marketing, quadrinhos e animação e pode permitir várias interpretações. Só um exemplo: a norma fala que estão proibidos bonecos em publicidade. Eu interpretei isso como o boneco do personagem, o desenho. Muita gente interpretou como sendo o boneco físico (se for, como vão divulgar um boneco sem colocá-lo na divulgação, mesmo que seja voltada para os pais?). Mas a resolução cria uma insegurança jurídica tremenda”. Danton se pergunta quem vai querer patrocinar um projeto infantil, como um gibi, num quadro desses? “A norma é tão mal-feita que só vejo dois cenários: ou vai ser mais uma lei que nunca será colocada em prática, ou será levada a ferro a fogo e sair proibindo tudo e atrapalhando inclusive projetos culturais”.

Mônica faz coro com Danton e afirma que, se a resolução for aplicada da forma como está, a embalagem do brinquedo na loja não poderia ser colorida, a caixa de lápis de cor teria que ser em preto e branco e por aí vai. “E a revista em quadrinhos vendida na banca teria que ser embalada em plástico preto, pois neste caso a capa dos gibis é colorida e cheia de personagens, já que essa é a essência do produto. Imagine você como uma banca de revistas iria vender gibis e quadrinhos sem que o consumidor pudesse ver o que está, de fato, comprando. É claro que isso afetaria a venda, e obviamente afetaria também a produção de todo um setor”.

Para a advogada Juliana Pantaleão, como esta resolução não é uma lei, sob esse aspecto, tarjas e/ou capas cobertas seriam abusivas. Mas ela concorda que, de fato, a resolução é bastante abrangente. “Penso que se levarmos ao extremo, não poderia haver vitrine em loja de brinquedos. Do jeito que está o texto da resolução, o local onde os gibis ficam expostos pode ser alvo de crítica sim. Vai ter gente falando que é para ficar com as revistas de conteúdo adulto (pornográfico), para não gerar vontade na criança. Tudo muito discutível”.

Mônica completa ainda dizendo que é ingênuo imaginar que uma restrição como esta não afetará milhares de pessoas que se dedicam à produção de conteúdo infantil no Brasil. “Gosto de citar alguns exemplos para ilustrar essa situação. Se as regras da resolução fossem aplicadas como estão, a propaganda, na TV, de um lápis de cor que colocou a Aquarela de Toquinho definitivamente no imaginário infantil não seria possível”.

Regulação ou censura?

Mais do que discutir apenas o impacto da Resolução 163 no mercado de quadrinhos, sejam eles nacionais ou não, é importante que se discuta também o quanto este tipo de projeto de lei, que visa regulamentar a comunicação direcionada ao público infantil, é realmente necessário no atual cenário brasileiro. Procurados pelo JUDÃO, os canais de TV por assinatura que falam para as crianças preferiram evitar diretamente o assunto – mas o Cartoon Network emitiu uma nota oficial na qual afirma que “apoia a autorregulamentação exercida pelo CONAR e o reconhece como o melhor e mais eficiente caminho para o controle de práticas abusivas em matéria de publicidade comercial”.

O CONAR é uma sigla para o Conselho Nacional de Aurorregulamentação Publicitária, uma organização da sociedade civil formada por representantes de todo o mercado (anunciantes, veículos, agências de publicidade) para aplicar as normas do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, aprovado em 1978 pelo III Congresso Brasileiro de Propaganda. O CONAR analisa e julga todos os tipos de propaganda (impressa, eletrônica, rádio, TV) mediante denúncias de que possam estar infringindo o código – que tem um capítulo inteiro destinado à criança e ao adolescente e proíbe o apelo imperativo de consumo infantil (compre, peça, faça) e propõe que os anúncios devam refletir cuidados especiais em relação à segurança e evitar qualquer tipo de discriminação, entre outros pontos. Além disso, o código vem sendo frequentemente atualizado – no ano passado, por exemplo, passou a vetar o merchandising em programas infantis.

Poltergeist

“Hoje, o Brasil possui um sistema misto de controle da publicidade dirigida à criança que inclui tanto previsões legais quanto normas decorrentes do sistema de autorregulamentação, ambos em conformidade com as previsões da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que preveem os direitos da criança”, explica Mônica. Além do CONAR, ela lembra que o Código de Defesa do Consumidor reprime abusos cometidos contra crianças ao proibir, no artigo 37, a publicidade enganosa e abusiva que “se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança”.

Há, no entanto, pelo menos uma voz dissonante, que discorda da eficácia do sistema de controle da publicidade no Brasil. Trata-se do Instituto Alana, ONG criada em 1994 e que tem, como um de seus pilares, justamente o Projeto Criança e Consumo – cujo objetivo é o debate sobre a influência da mídia e do marketing sobre as crianças e a conscientização da sociedade brasileira a respeito do assunto. Grande articulador no que tange a proibição da publicidade com foco nos pequenos, o grupo tem uma equipe que analisa queixas de abusos, elabora notificações e representações e acompanha as discussões no Poder Público para a elaboração de políticas públicas no sentido de proteger os direitos da criança no que tange o consumo. Obviamente, eles fazem parte do conselho do CONANDA.

“No Brasil, a atuação do CONAR, formado por agentes do próprio mercado publicitário, não tem apresentado resultados efetivos com relação aos interesses públicos  no tema da publicidade infantil”, opina Pedro Hartung, advogado do Instituto. “Também se demonstra resistente ao necessário compartilhamento da regulação publicitária com o Estado, a chamada corregulação – uma vez que somente o Estado possui o chamado poder de polícia, que a capacidade de fiscalizar e aplicar sanções”. Citando o levantamento “Autorregulação da publicidade de alimentos para crianças”, realizado pelo LIDS (Harvard Law & International Developmente Society), da Universidade de Harvard, em parceria com o Instituto Alana e a ANDI, que compilou as experiências de autorregulação em quatro países – Canadá, França, Reino Unido e Austrália – e na União Europeia, ele afirma que a existência de um regime legal estatal que permita a fiscalização e cumprimento das regras é fundamental para o sucesso da autorregulação.

Hartung ainda afirma que os que querem a manutenção da prática da comunicação mercadológica infantil enxergam na Resolução uma ameaça aos seus interesses e, por isso, tentam tirar a legitimidade de sua força e abrangência. A filha do seu Mauricio discorda: “Nós acreditamos que a melhor forma de lidar com a questão da publicidade infantil é a educação, e jamais a proibição”. A diretora da MSP traz para a discussão um elemento importante, até então pouco mencionado como parte da formação de um indivíduo saudável: os pais. “Eles têm um papel essencial na formação da criança em todos os sentidos. São eles que devem estar ao lado dela em todos os momentos de seu desenvolvimento. É claro que a criança, como um ser humano em formação, está sujeita à influência da escola, dos amigos e de tudo o que o cerca, inclusive da comunicação – que é apenas um dos fatores de influência da criança, entre tantos outros existentes”, diz Mônica. “O pai e a mãe são quem dão o exemplo, são aqueles que conduzem o aprendizado da criança e que constroem a base daquilo que essa criança se tornará quando atingir a idade adulta”.

Hartung discorda deste peso e diz que, com relação à publicidade infantil, a relação estabelecida entre a publicidade, os pais e as crianças é extremamente desigual. “No momento em que a publicidade é direcionada diretamente ao público infantil, pensada especialmente para isso com o uso de artifícios ligados ao imaginário e ao universo infantil, essa mensagem comercial abusa da vulnerabilidade infantil, desrespeita a autoridade de pais e mães uma vez que não os tem como mediadores deste conteúdo e, ainda, coloca esses mesmos pais e mães como os vilões que sempre negam o desejo despertado artificialmente pela publicidade, gerando, muitas vezes, um estresse familiar constante”. O advogado do Instituto Alana defende que, segundo pesquisas nacionais e internacionais de “renomados especialistas do desenvolvimento infantil”, a criança não consegue responder com igualdade e de forma crítica a publicidade que fala diretamente com ela, uma vez que tem “dificuldade para diferenciar a publicidade do conteúdo normal de programação e, ainda, entender o caráter persuasivo da mensagem comercial”.

Big

O JUDÃO conversou com uma especialista em desenvolvimento infantil, a pedagoga Larissa Fonseca, para entender o quão fortes podem ser as influências vindas dos dois lados, dos pais e da mídia, na formação de indivíduos excessivamente consumistas. “É simplista proibir comerciais de televisão e personagens pois essa proibição sumária da propaganda dirigida para crianças de até 12 anos para protegê-las das tentações do consumo e de outros supostos riscos não garante que elas não irão ser influenciadas por outros meios com os quais têm convivência diária”, afirma Larissa. “É sempre mais educativo e construtivo ensinar as crianças a lidarem com a situação, do que aliená-las por um período”.

A pedagoga revela que o aprendizado relacionado a uma simples palavra, de pai para filho, pode ajudar a virar este jogo e dar ainda mais poder aos pais: NÃO. “É preciso ter em mente que [a relação pai-filho] não deve ser um relacionamento quantitativo e sim com qualidade com o filhos. A base de uma boa educação está na formação de pessoas críticas, autônomas e com responsabilidade social”, explica ela. “A boa comunicação, afeto e paciência são grandes aliados para se obter um resultado satisfatório durante essa tarefa. Limites coerentes e claros, respeitados por todos, são o primeiro e fundamental passo para a internalização desses valores”.

Larissa é firme ao dizer que, se os pais oferecem tudo o que a criança quer, na hora em que ela quer, isso só vai desestimulá-la. “Ela nunca terá a oportunidade de vivenciar a expectativa da conquista e vai sempre estar frustrada e desmotivada, dado que não precisa se esforçar para ganhar o que quer. (...) Por tudo isso, mesmo sabendo que uma negação poderá acarretar reclamações, queixas, ameaças ou processos, seja firme em sua decisão e posicione-se de modo coerente e honesto”.

Vejam, este escriba pouco humilde que vos escreve é pai. Sou o paixão orgulhoso de um menino de 3 anos e de uma menina de 10 anos. E a responsabilidade é minha. Toda minha. Não da TV, nem da publicidade ou da terrível e avassaladora máquina do marketing e do consumo moderno e zzzzzzzzz.... Pais têm que saber dizer não. Este é um dos grandes males da educação moderna. Pais têm que ser mais próximos, têm que sentar para brincar os filhos, têm que conversar com eles, têm que entender o pequeno universo deles, entender os programas que eles vêm na TV, entender os heróis deles. E têm que saber impor limites.

Proibição nunca é a solução. Nunca. Um pai presente na vida do filho, que não usa a TV como babá, jamais vai precisar se preocupar com a quantidade de comerciais que são exibidos na TV, nas revistas, na internet. Existe uma coisa chamada consumo consciente da mídia. Não preciso que o Estado me diga, ou diga para os meus filhos, o que eles devem consumir ou em que quantidade. A decisão é minha. E quero criar os meus pequenos para que eles tomem as suas próprias decisões.

Eu cresci assim. Vi televisão a todo vapor. Ainda vejo, aliás, assim como leio pra caramba. Tive tanto contato com propaganda que, vejam só, fui parar na faculdade de publicidade, dada a fascinação. E nem por isso me tornei um anormal, um comprador compulsivo, um depressivo que se revoltava com o mundo porque não podia comprá-lo.

Porque eu via televisão, sonhava com aqueles heróis e seus bonequinhos, mas tinha pais ao meu lado que me levavam ao parque, que me deixavam jogar taco na rua e brincar de esconde-esconde com a molecada. Tudo bem dosado. Sem exageros.