Muitas dívidas. Mas que nem de longe significam o FIM. Talvez sejam um novo começo.
O ano é 2018. Enquanto estava passando alguns dias em São Paulo, passeei pelas ruas do HYPADO bairro de Pinheiros. Além do calor insuportável para o mês de Julho e do prédio esquisito com uma carambola rosa, algo me chamou muito a atenção. Uma estrutura enorme, toda envidraçada, parecendo um shopping, estava servindo de teto para moradores de rua. Quando eu perguntei o que tinha sido aquele prédio, ouvi se tratar a “FNAC de Pinheiros”. Conversamos um pouco sobre como era aquele lugar em funcionamento e eu só tentava entender como uma loja tão famosa, tão grande e de referência no mercado tinha fechado.
Poucos meses antes do meu passeio, no entanto, outra marca tão famosa quanto, a Saraiva, já dava indícios de um problema que afetaria mais do que suas lojas. Depois da saída de seu diretor financeiro, anunciou que precisaria de três meses para pagar seus fornecedores; em Junho, teve sua falência requerida, mas disse que o processo era “claramente descabido” e que o saldo “dos supostos débitos já tinha sido quitado”; em Agosto, a dívida só crescia; em Setembro, editores denunciavam mais atrasos nos pagamentos; em Outubro, fechou 19 lojas em todo Brasil e demitiu 700 funcionários.
Hoje, a Saraiva quer deságio (depreciação do valor de um título ou do preço de mercadoria em relação ao seu valor de mercado) de uma porcentagem absurda da dívida de mais de MEIO BILHÃO de reais (R$ 674.698.227,29 com todos os muitos centavos, para ser bem exata). Além disso, pede também que as editoras esperem pelos próximos dez anos para ver a cor do dinheiro, porque a situação fugiu do seu controle. A empresa, inclusive, protocolou um pedido de recuperação judicial, depois de muito brigar com o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) para resolver o problema fora dos tribunais. A situação é tão inacreditável que a Saraiva está devendo para outras áreas da PRÓPRIA Saraiva.
Enquanto isso, sua principal rival no varejo, a Livraria Cultura, encara as consequências de decisões não pensadas: viu sua mais-recente-aquisição FNAC sair do Brasil sem nem pagar aviso prévio dos funcionários da finada loja, fechou estabelecimentos em São Paulo, saiu do Rio de Janeiro, entrou também com um pedido de recuperação judicial e agora pede um pouco de “empatia” com a empresa, porque eles não querem fechar as portas. Uma empatia que também quer deságio de 40% da dívida e doze anos de espera para pagar o resto.
Tudo isso depois de ficar com 50% do preço de capa dos livros e deixar as editoras com o que sobra pra pagar funcionários, impressão, transporte e tudo mais que envolve o complexo processo de se fazer e divulgar um livro — incluindo, claro, aqueles ENORMES 8% a 10% do autor.
O nome, senhoras e senhores, é crise. Mas se engana quem pensa que ela é uma coisa recente.
Não é novidade pra ninguém que empresas no Brasil tem sofrido com a crise de 2016, marco também do início do momento mais sombrio do mercado editorial. Mas essas duas gigantes não compartilham somente o ideal megalomaníaco de querer abocanhar todo o mercado e ser a principal fonte de capital das editoras: elas tem em comum o modelo de compra CONSIGNADA, o famoso “me empresta aí e, se eu vender, eu te pago depois”.
A consignação surgiu nos anos 1990 como um modo de ENCHER as livrarias de todo livro possível. Ninguém sabia o que estava fazendo (vai, nem FHC sabia), a moeda vigente trocava dia sim, dia não, as livrarias só queriam mais livros, as editoras só queriam crescer e ter seus best-sellers. Conclusão: impressão desenfreada, as livrarias viraram verdadeiras LOJAS DE LIVROS, o mercado cresceu, a quantidade de leitores aumentou.
Mas o que se provou eficaz há quase 30 anos se tornou algo engessado pelas próprias editoras e livrarias e muitas delas não conseguiram acompanhar a reviravolta das coisas — até porque, pensando como bons capitalistas, se tá dando lucro, não precisamos mudar — e a máquina da consignação ficou muito grande para se sustentar com suas próprias pernas.
Primeiro, a demanda por livros não é daquelas que cresce progressivamente, pelo menos não como a produção e a venda. Embora o público leitor tenha aumentado, o poder de consumo foi afetado pela crise. Enquanto isso, as grandes livrarias aumentaram, se diversificaram (vendendo de caderno das Frozen até jogos de videogame, celulares, CDs, colecionáveis, quadrinhos...) e continuaram a funcionar pela consignação.
Quer dizer, mais ou menos.
Encomendando ainda grandes quantidades de livros das editoras, essas gigantes deixaram de pagar, às vezes por não poder mesmo, às vezes por redirecionar os recursos para cobrir outras dívidas. No fim das contas, temos, de um lado, editoras imprimindo cada vez mais livros na esperança de uma onda de novos leitores consumidores (que de fato tomou forma nas últimas duas décadas, mas que não tem nem de longe o mesmo perfil dos anos 90); de outro, as lojas continuaram enchendo suas prateleiras sem pagar nada para quem os fornece.
Não dá para culpar o consumidor, claro. Em tempos de crise, nem faz sentido o leitor médio preocupado com os boletos pra pagar sair comprando mais e mais livros. Às vezes, nem dá para manter o hábito de consumo que já tinha.
Mas isso não significa que os leitores não COMPREM ou LEIAM livros.
A TAG, por exemplo, conta com 40 mil assinantes (!) de suas caixas com edições de luxo exclusivas; a editora Aleph recentemente bateu recorde com seu financiamento coletivo da edição comemorativa MARAVILHOSA de 50 anos de 2001 – Uma Odisseia no Espaço; a DarkSide tem lançado novas edições de livros clássicos já publicados e que poderiam ser encontrados em qualquer banca por R$15 mas, mesmo assim, consegue que seus leitores (ou seguidores fiéis) paguem um pouco mais por reinterpretações de projetos de altíssima qualidade; eventos como a Feira Plana, Feira Miolo(s), Tinta Fresca, Feira Tijuana e as já consagradas Feira Literária Internacional de Paraty e a Bienal do Livro têm recorde de público todos os anos.
Claramente não temos falta de procura ou de interesse. O problema está no MODO como o produto é oferecido, produzido, vendido e divulgado.
As editoras independentes perceberam a carência pelo diferencial e têm carregado a inovação e a diversificação do mercado nas costas. Com a crise, essas pequenas empresas têm se reinventado e se apoiado em estratégias de publicação e distribuição de livros: vendem o produto nos próprios sites, em bancas literárias como a Tatuí e a Curva, em livrarias menores como a Blooks e a Leonardo da Vinci, e em feiras. Ou seja, a venda é efetuada DIRETAMENTE entre a empresa-editora e o leitor, sem nenhuma megastore envolvida. Angariam um público fiel, ainda que não MASSIVO, e não sofrem com a falta de controle da Saraiva e da Cultura, pois não precisam delas para que seus livros circulem. Relacionamento dos sonhos.
Além disso, todos sabemos que a forma de adquirir o conteúdo dos livros está mudando, principalmente porque o livro não tem concorrido somente com outros livros, mas com o tempo que temos passado em redes sociais ou em serviços de streaming, por exemplo. Sendo assim, essas pequenas editoras têm apostado na publicação de autores inéditos e em projetos gráficos de qualidade, oferecendo uma experiência para além do verbo LER e mostrando que sim, dá para se reinventar o tempo todo, não ter medo de apostar em diversidade e ainda LUCRAR com isso :)
Sabe aquilo que o JUDAO.com.br sempre fala por aqui, sobre VALORIZAR QUEM FAZ CONTEÚDO INDEPENDENTE? Pois é.
As editoras estão, no momento, tentando se reestruturar, significando isso ou não demissões de mais funcionários e diminuição de títulos e tiragens impressas por ano. Pouquíssimas das 540 editoras que se reuniram com o SNEL conseguiriam aceitar os termos da Saraiva e da Cultura e sair bem nessa história toda, sem falar na dependência maior que migra para OUTRAS lojas, como a Amazon.
Essa, então, é um caso à parte. A empresa americana “responsável” pelo fechamento de INÚMERAS livrarias ao redor do mundo porque simplesmente não conseguiram competir com ela, chegou ao Brasil somente em 2012. Apesar de, hoje, representar apenas 10% do varejo de livros no país, tem crescido de maneira quase assustadora e mostrado que veio para brigar por MUITO espaço: seu e-commerce não para de expandir, suas promoções são aguardadas por muitos, foi a única responsável por vender o restante do estoque de nossa querida e falida editora Cosac Naify, lançou seu serviço de streaming no Brasil, criou o Prêmio Kindle de Literatura e é a rainha dos e-books.
Ah, e ela traz o dinheiro amado em até 3 meses.
E a briga ficou mais séria ainda. Percebendo que as editoras, naturalmente, dependeriam mais dela, fez uma proposta irrecusável: enviou uma carta na última quarta-feira (28) dizendo que realizaria “pagamento antecipado de seus recebíveis com a Amazon em taxas mais baixas do que as de mercado”, além de aquisição de obras devolvidas, um percentual de vendas online para as editoras e condições mais simples para publicação e venda de e-books.
Vai, Amazon, eu sei que você disse que tudo isso era para um bem maior, mas a verdade mesmo é que foi o capitalismo selvagem te mostrando uma brecha enorme no mercado brasileiro e te dando AQUELA oportunidade que tanto esperava de crescer e multiplicar. Parabéns pela jogada, de qualquer forma. Vamos ver se isso funciona a curto prazo e torcer para que, a longo, não seja a mesma velha história de dependência envolvendo consignados.
Diante desse cenário caótico, algumas das grandes editoras estão FINALMENTE descobrindo que não podem continuar com o modelo engessado de compra e venda de 30 anos atrás
A Companhia das Letras (que recentemente foi assumido pela Penguin Random House, o maior grupo editorial do mundo) anunciou que abriu uma loja no marketplace da B2W (mais conhecida como Submarino, Shoptime e Americanas.com) com todo o seu catálogo disponível, além de criar um SAC para ajudar os leitores que tiverem dificuldade em encontrar seus livros. A editora Intrínseca recentemente criou o Intrínsecos, clube do livro por assinatura que envia todo mês para seus clientes uma edição de luxo com brindes. E o Grupo Editorial Record resolveu juntar o útil ao agradável e criou um SAC para venda direta aos leitores AND um clube do livro por assinatura.
O mercado editorial está longe do seu fim, assim como o modelo de consignação parece difícil de ser desvinculado dele. Mas esperamos que esse susto signifique um novo modo de respeitar o leitor, perceber o bem que os independentes estão fazendo ao mercado e ao mundo literário. Mas, principalmente, uma nova maneira de se pensar livros.
Sem lojas fantasmas nos assombrando pela cidade.
Elisa Esposito começou a ler com Crepúsculo e hoje está tomando decisões melhores. Há 5 anos vive o mercado editorial por dentro e aceitou o convite do JUDAO.com.br pra falar um pouco sobre como estão as coisas.