Ódio eterno ao concerto musical moderno | JUDAO.com.br

E lá estava eu, me acabando num dos shows mais lindos da minha vida. Enquanto isso, do meu lado, um sujeito de celular em punho procurava o melhor ângulo para os seus likes.

Neste Dia das Crianças, eu me dei um presente e fui ver um show, aqui em São Paulo, de uma das minhas bandas favoritas: os alemães do Blind Guardian. Power metal europeu cheio de elfos, anões, guerreiros, Senhor dos Anéis. Aquela história. Eu amo desde a adolescência, acho eu que comecei a ouvir com uns 13/14 anos de idade, leitor de quadrinhos, jogador de RPG, começando a ler Tolkien, deu no que deu.

Você pode não conhecer os caras, embora eu, no papel de fã, ache que você deveria. Só que isso não importa para que eu chegue aqui no meu ponto. O que você precisa saber é que sou um fã devotado de uma banda e lá estava eu, cara a cara com eles. Foi a terceira vez que os vi ao vivo na vida e foi a melhor até o momento. Tocaram as músicas que eu queria e até umas que eu não imaginava serem possíveis. Eu não parei um minuto. Cantei junto do início ao fim, gritei, pulei, bati cabeça, chorei, dancei (verdade, quando eles tocaram o cover de Barbara Ann, durante o bis). Fiquei suado, rouco, com as costas doendo e as pernas em frangalhos.

Tudo valeu a pena. Tudo, sem exceção. Estava cagado, mas com o coração em festa. Porque eu sorri o tempo inteiro. Porque eu entrei de cabeça. Porque eu estava ali de corpo e alma. Porque eu CURTI. Sem precisar dar like. Foi a curtida da vida real, uma curtida que durou 2h20.

Mas (e sempre tem um “mas”), nos intervalos entre as músicas, naqueles poucos segundos que eu tinha para respirar e berrar “que foda!”, com muitas vogais, comecei a reparar numa coisa: a imensa quantidade de celulares ligados e em pleno funcionamento ao meu redor. Tá bom, tá bom, não vou bancar o tiozinho aqui, sei que este é um fenômeno que está longe de ser recente – na hora em que as bandas tocam suas baladas, os isqueiros foram substituídos oficialmente pelas telinhas acesas dos smartphones. O que eu não entendo, de verdade, é quem resolve que vai curtir este tipo de situação olhando pela tela de um celular.

Juro que entendo, sei lá, que a pessoa queira tirar uma foto para registrar o momento. Tá bom, vá lá. Não precisa ter tanta importância assim, ser caso de vida ou morte, mas entendo. Só que tinha um sujeito do meu lado que passou mais da metade do show com o celular pra cima, gravando vídeos de tudo que estava acontecendo. Isso dá cerca de uma hora com o braço levantado. E ainda tentando não tremer.

Uma garota mais na frente ficava postando no Twitter tudo que estava rolando – ou, pelo menos, o pouco que ela via, já que estava prestando mais atenção na telinha do que no palco. Outra, logo atrás de mim, gravava pequenos vídeos e ficava mandando para alguém (ou “alguéns”) via WhatsApp. Um sujeito passou por mim falando no celular, no meio de uma música, gritando “tô aqui no show do Blind Guardian, mano, tá foda”. E um sujeito teve a manha de abrir a mochila e, que rufem os tambores, tirar um iPad de lá de dentro pra gravar o show. UM FUCKING IPAD!

Isso sem falar o cara de quem eu me afastei logo na terceira música para não me estressar porque, a cada canção que começava, ele fazia questão de tirar uma selfie tendo o palco como pano de fundo, do tipo “olha os meus amigões tocando ali”. Sabe qual é o resultado disso? Um monte de fotos borradas e vídeos tremidos e com um som abafado e horroroso – mas que, olha só, servem de troféu, pra mostrar ao mundo que você estava lá e é importante...

A pergunta que fica é: o que estas fotos e vídeos de merda contam do show, no final das contas? Nada. De um show lindo como este, rigorosamente porra nenhuma.

Foto: Thiago Rahal Mauro

Foto: Thiago Rahal Mauro

Shows, pra mim, sempre foram EXPERIÊNCIAS. Aquele retrato único de um momento ÚNICO. O legal de um show de música – é, sim, de qualquer gênero, não precisa ser de rock – é que um nunca vai ser igual ao outro — PELO MENOS pra quem tá lá. Por mais que o setlist seja igualzinho ao da cidade anterior (o que, no caso do Blind Guardian, ainda foi mais legal, porque eles mudaram parte do set de cidade pra cidade, reservando pequenas surpresas pra enganar o setlist.fm), um show de música não é igual ao que você ouviu no disco e, caralhos, esta é a parte mais legal da coisa.

Como você consegue se envolver com uma experiência como essa pendurado no celular?

Ali você vê a interação entre os músicos, vê os improvisos, vê os pequenos erros, as escorregadas, as mudanças de andamento, a letra que sofre uma ligeira modificação, o olhar para a plateia, as piadas, as surpresas de última hora. É, sim, tudo isso faz parte e ajuda a dar uma pimenta, um tempero diferente. Se fosse para ver os caras tocando mecanicamente, pedaço por pedaço da canção, exatamente como no álbum, eu ficava em casa, gastava menos com cerveja, estacionamento e a porra toda. Mas eu compro um ingresso para um MOMENTO. Não é apenas pela música. É pela música do jeito que vai ser tocada ali.

E você só curte estas coisas mesmo quando está no clima, está prestando atenção, está se deixando envolver, se emocionar. Como você consegue se envolver com algo assim pendurado no celular?

Certeza que você, que está lendo este texto, tem um daqueles amigos/colegas que não resistem a fotografar qualquer coisa na vida, da cara cheia de remela de quem acabou de acordar no espelho ao prato chique da hora do almoço. E este amigão, sabe, quando vai viajar, quando vai conhecer uma cidade histórica, quando tem a chance de estar de frente para um patrimônio da humanidade, um monumento, uma pintura clássica, um fenômeno da natureza, aquele pôr do sol de tirar o fôlego, o que ele faz? Não se contenta em simplesmente fotografar. Ele tem que fotografar e também aparecer na foto. Porque a Mona Lisa só pode ser importante e icônica se ele estiver ali, com um sorriso bobo do tipo “oi, mamãe”.

O que isso conta da viagem dele, mesmo?

Eu tenho um amigo assim. Aliás, mais do que um. Ainda bem que, no show deste dia 12, nenhum deles estava lá.

Porque os meus amigos estavam de verdade mais preocupados em entrar no clima, entoando prolongadamente “Somebody’s out there” ao final de The Last Candle ou “Valhalla – Deliverance / Why’ve you ever forgotten me?” assim que acabou a exaltação nórdica de Valhalla. Estavam mais preocupados em se abraçar para cantar The Bard’s Song assim que Hansi, o vocalista, jogou para a galera – e tudo mundo (ou quase) entrou no clima ao som suave do violão.

Isso é o tipo de coisa que faz a diferença. É esta a real lembrança que vou levar deste show para contar para os meus filhos. Porque prioridades, gente, são tudo nesta vida. Ainda bem que as minhas incluem a satisfação de chegar em casa, arrancar o tênis e dizer “putaquepariu, mas que show do caralho”.