Absoluta e semvergonhanenhumamente inspirados nos 31 Gaems do Overloadr, começamos a série 88 Filmes, em que 88 autores convidados contarão, sem nenhuma frequência definida, a importância que 88 filmes tem na sua vida, seja como o screensaver de algum momento marcante, seja o próprio filme o tal do momento marcante. Serão 88 artigos extremamente pessoais, mostrando o papel importante da cultura pop na vida das pessoas. :)
Tive uma infância emocionalmente difícil. Meus pais se separaram quando eu tinha 4 anos e, por alguns motivos que não valem ser citados, ficou decidido que eu moraria com o meu pai e meus avós paternos, visitando meus irmãos e mãe aos finais de semana.
O problema é que eu não era feliz ali. Ninguém era, na verdade. Meu pai, simplificando muito, não era uma boa pessoa. Minha avó tinha uma alma... complicada, me tratava com rigidez. Meu avô era bacana mas, depois de um AVC, ficou com a locomoção limitada e já não podia mais brincar comigo. No final das contas, eu era a única criança da casa e constantemente me sentia solitária e me divertia sozinha com o que achava interessante.
Até que, um dia, quando eu tinha 7 anos, meu pai foi me buscar na escola e disse que iríamos pra um lugar diferente. Ele começara a namorar há pouco tempo e era dia de eu conhecer essa nova moça. Eu era muito tímida e novas pessoas eram um grande pesadelo. AINDA MAIS quando eram adultos.
Chegamos no prédio, elevador parou e ele tocou a campainha. Aí a porta se abriu. E, para a minha surpresa, aquela mulher estava ajoelhada, na altura dos meus olhos, sorrindo muito. Eu nunca tinha visto uma adulta sem olhar pra cima, acho. Achei engraçado.
“Oi, Bia! Eu sou a Jussara. Você pode me chamar de Ju, se quiser. Ou de Juju”, ela falou. Eu apenas acenei com a cabeça e entrei no apartamento.
Era um lugar diferente da minha casa. Muito claro, fresco, arejado, janelas enormes. Ela me levou pra conhecer seu cômodo favorito: sala de TV! Lá existia um sofazão, vários pufes e uma televisão de um tamanho que eu nunca tinha visto NA VIDA. Enorme. Meus olhos grandes ficaram es-bu-ga-lha-dos.
“Bia, diz pra mim, o que você gostaria de assistir?”. A resposta pra essa pergunta só poderia ser uma: Branca de Neve e os Sete Anões. Eu era ALUCINADA nesse filme, assistia todo dia. Ele acabava, eu rebobinava a fita, assistia de novo. Decorei as falas (lembro BEM até hoje de várias delas). Sabia toda a movimentação da Branca, dançava e cantava junto, era OBCECADA. Meu cabelo era igual ao dela. ALL THINGS BRANCA DE NEVE.
A Jussara parou. Colocou o dedo no queixo enquanto olhava pra mim. Virou-se, tirou um VHS da estante:
– Você conhece uma babá chamada Mary Poppins?
– Ahn? Não!
– Vamos por o filme dela pra você conhecê-la, então!
– Mas… mas e a Branca de Neve?
– Eu não tenho aqui, eu acho… Esse é muito legal também!
Pronto. Minhas bochechas arderam em ansiedade e eu comecei a chorar. Uma casa diferente, essa moça diferente, COMO ASSIM o filme seria diferente também? Ela me pedia calma, disse que colocaria só dez minutinhos. “A Mary é muito minha amiga e pode ajudar quando uma criança chora, sabia? Vamos ver só um pouquinho. Depois, eu tiro e vamos assistir Branca de Neve, se você quiser. Tá?”.
E enquanto eu ainda fungava, ela surgiu, se maquiando em cima de UMA NUVEM.
Parei de soluçar. E reconheci a atriz de um outro filme que já assistia e adorava, A Noviça Rebelde. Comecei a prestar atenção e conheci ali duas crianças que, como eu, não tinham companhia. Moravam numa casa que não parecia recebê-las direito, com pais que pareciam não se importar muito. Mas Mary, aaaah, Mary estava lá para mudar tudo. A cena de arrumação do quarto com ESTALOS DE DEDOS fez meu queixo cair. As danças, as músicas, o supercalifragilisticexpialidoce!
Mary Poppins me apresentou um mundo em que adultos e crianças divertiam-se juntos, sem culpa, sem peso.
O filme acabou e Ju, com um meio sorriso, perguntou se eu havia curtido. Lembro de levantar alto meus bracinhos e gritar um sonoro SIIIIIIIIM!!!! “Põe de novo?”, pedi. Mas ela me perguntou se eu não gostaria de, sei lá, pintar alguma coisa, desenhar, dançar. Tava me sentindo mais solta e aceitei!
A partir desse dia, ir na casa dela era um sonho. Eu podia correr, dançar, fazer sujeira com tinta e massinha, planejar peças de teatro, brincar com as cachorras dela (daquela raça salsichinha, Dachshund) e, claro, assistir mais e mais vezes a história dos irmãos Banks e sua babá de outro mundo.
Depois de dois anos, ela se separou do meu pai. O tempo passou e nós nos afastamos. Mas eu nunca, nunca vou esquecer das cores que ela pôs na minha vida, na liberdade que me deu, dos filmes que vimos, das músicas que cantamos… Ela não só me apresentou ao musical. Ela foi uma Mary Poppins pra mim, também.
E eu honestamente não sei o que seria de mim se ELAS nunca tivessem aparecido na minha vida. :)
Beatriz Fiorotto é produtora audiovisual, redatora do JUDAO.com.br, produtora e membro do ASTERISCO, produtora e eventual participante dos podcasts do Overloadr e reclamona. Outras histórias de outros filmes você pode ler aqui. :)