A gente ama o autor inglês, inclusive no seu longo histórico de rabugice. A gente até concorda com a rabugice dele em muitos casos. Mas o que o Lindelof disse e dentro do contexto que falou faz um BAITA SENTIDO. E faria até pro próprio Alan Moore. Se ele quisesse ouvir.
Depois do trailer da série divulgado durante a San Diego Comic-Con, o showrunner Damon Lindelof aproveitou sua presença no painel a respeito da série Watchmen — agora com estreia confirmada pra outubro, na HBO — no evento da Television Critics Association pra falar um pouco mais sobre a produção inspirada na clássica HQ divisora de águas para os quadrinhos de super-heróis, cortesia de Alan Moore e Dave Gibbons.
“Qual seria o equivalente, em 2019, ao conflito nuclear entre americanos e russos?”, perguntou ele, diante de uma plateia de jornalistas, obviamente já sabendo a resposta, que viria a seguir. “São os conflitos raciais que envolvem a polícia. Não existe como derrotar a supremacia branca — isso é algo que não vai embora. Não existem respostas fáceis e uma solução grandiosa”. Se você assiste ao trailer, logo vai sacar que existem policiais mascarados, que resolvem se inspirar nos vigilantes uniformizados para não revelar suas identidades, por um lado tentando preservar suas famílias da ação da criminalidade, por outro tornando-os praticamente imunes à responsabilidade pelos excessos, pela violência extrema, pelo racismo...
E aí do outro lado, habemus um culto de malucos mascarados inspirados por Rorschach, o investigador psicótico de hábitos truculentos e questionáveis e que, apesar de ter desvendado uma conspiração para o mundo com a publicação do seu diário, não deveria de fato servir como modelo de comportamento pra ninguém. No meio deles, bom, um presidente bastante liberal vivido por Robert Redford, um Ozymandias/Adrian Veidt que o mundo não sabe onde foi parar interpretado por Jeremy Irons e até o que parece ser o Doutor Manhattan retornando de seu exílio em Marte. Tudo leva a crer que a protagonista, neste mundo em nova convulsão, é a policial vivida pela excelente Regina King, envolta na descoberta de MAIS UMA conspiração longe dos olhos do público.
“Não é como se este fosse um mundo que você reconheça, além dos temas meio Cavalo de Troia do mundo real que nós inserimos num mundo ficcional”, tenta explicar ele. “O que é história de verdade e o que é história alternativa começam a se misturar no meio de tudo”.
Um pouco, claro, como o que o próprio Moore fez nos quadrinhos originais, que eram uma espécie de “o que aconteceria se os super-heróis existissem de verdade e como eles teriam impactado os anos 1980 da Guerra Fria com Ronald Reagan como presidente?”. É enxergar o mundo ao redor de maneira crítica, é política pura, trazendo uma leitura sobre a realidade dentro de um contexto fantasioso. Não existem super-heróis no nosso mundo. Mas tem racismo pra caralho e aqueles policiais mascarados podem MUITO BEM acontecer um dia: basta lembrar dos oficiais usando com orgulho o símbolo do Justiceiro, né?
Em outras ocasiões, Lindelof tentou desviar do assunto, dizer que a série de TV não vai querer recontar a história dos quadrinhos, que vai ser um remix... No TCA, no entanto, ele foi mais direto e, enquanto faz menção aos eventos da versão televisiva em tese se passarem pós 12 edições do gibi de 1986/87, o cara iniciou uma reza em nome do Deus Alan Moore, para evitar qualquer mal-entendido sobre como as duas coisas se conectam. “Não vamos mexer com o gibi, ele é cânone”.
Então. Era sobre ISSO que a gente queria mesmo falar. ;)
Quando o nome de Moore pintou na mesa, meio que monopolizou a conversa, porque a polêmica vende e o inglês já fez questão de deixar clara a sua opinião a respeito das adaptações de suas obras para cinema / TV / whatever. Basicamente, Moore acha tudo uma merda por antecipação e faz questão de não participar de rigorosamente nada: não quer ser consultor, não quer ver seu nome nos créditos e a parte que lhe caberia neste latifúndio, financeiramente, o barbudo prefere ver sendo revertida para o desenhista que trabalhou com ele na HQ.
O presidente de programação da HBO, Casey Bloys, fez questão de ressaltar que Moore não estaria, portanto, “empolgado” com esta nova adaptação. Talvez o executivo tenha falado isso no piloto automático, já pensando no comportamento-padrão do escritor, porque sinceramente acho MUITO difícil que alguém tenha conseguido ouvir efetivamente algo do autor além de um posicionamento vindo de um de seus advogados, por mais que fosse uma frase sucinta a respeito. Todavia, contudo, no entanto, Moore ainda é uma espécie de fantasma, criativamente falando, na vida de Lindelof.
“É uma luta constante. Não acho que fiquei em paz com isso”, desabafou o cara. “Alan Moore é um gênio; na minha opinião o maior roteirista dos quadrinhos enquanto mídia e talvez o maior escritor de todos os tempos. Ele já deixou claro que não quer qualquer associação com Watchmen e não quer que seu nome seja usado para fazer as pessoas assistirem à série, que é algo que quero respeitar. Mas como alguém cuja identidade foi construída num relacionamento complicado com o pai, com uma necessidade constante de me provar e nunca conseguir, Alan Moore assumiu este lugar”, diz.
Só que aí vem um ponto interessante. Porque ao dizer que esta luta interna por uma aceitação fictícia de Alan Moore vai continuar, Damon reforça que quer seguir o espírito rebelde, punk rock, do próprio Moore. “Se você dissesse para o Alan Moore, um jovem Moore de 1985 ou 1986, que ele não poderia fazer isso ou aquilo porque os criadores do Superman ou do Monstro do Pântano não queriam, ele diria ‘Foda-se, vou fazer isso querendo você ou não’. Então estou incorporando o espírito de Alan Moore para dizer ao Alan Moore ‘foda-se, vou fazer isso querendo você ou não'”.
Claaaaaaaaaaro que “Damon Lindelof manda Alan Moore se foder” virou a manchete principal de um monte de sites, fazendo um monte de gente xingar muito no Twitter, por mais que ele ainda tenha brincado logo na sequência dizendo “calma, gente, é só um clickbait”. E era mesmo. Muito jornalista, de lá e de cá, caiu. Os leitores idem. E Lindelof, que não é bobo nem nada, foi bastante inteligente em fazer a respeitosa provocação, depois de deixar claríssimo o quanto é fã do recluso autor inglês.
Mas vamos colocar os pingos nos is? Alan Moore é MESMO um gênio, ainda que não acerte SEMPRE. A sua questão, nas obras clássicas, de usar estupros como molas propulsoras de personagens femininas, ainda que num tom crítico, é uma das que precisam ser discutidas, por exemplo. E Alan Moore também consegue ser BEM chato quando quer. O que, no fim, não é um problema quando ele se posiciona contra a exploração das grandes corporações e como elas simplesmente não remuneram os autores, por exemplo. Assim como não é um problema quando ele assume uma postura crítica a respeito da relação tóxica e infantilizada que parte dos fãs adultos têm com seus super-heróis da infância.
Isso é Alan Moore sendo punk pra caralho e a gente tá totalmente com ele.
Neste ponto, pelo menos até o momento, a última coisa que Lindelof fez foi usar o estereótipo padrão do super-herói. Estamos falando de uma produção HBO: este não é claramente um exemplar do Arrowverse, e isso vindo de um cara que adora Arrow, The Flash e derivados, deixemos claro. Por tudo que vimos e lemos até agora, Watchmen, a série, quer usar o estereótipo do herói de maneira crítica, quer desmontar/desconstruir e isso é, goste ele ou não, gostem vocês ou não, Alan Moore pra caralho.
Aí tem toda a questão de que o próprio Moore também insiste que seus roteiros foram criados tendo os gibis como mídia e, portanto, a transposição da narrativa não faria qualquer sentido, faria mais sentido criar algo novo, coisa e tal. De novo, aqui a gente concorda com o barbudão inglês, pelo menos pra começo de conversa. Tá mesmo fazendo falta material novo, original, que não seja adaptação de gibi, de jogo de videogame, remake, reboot, estas paradas todas. Mas também somos totalmente defensores aqui daquela questão de, tá bom, se vai adaptar, que seja pensando que gibi é gibi, filme é filme, por exemplo. Se vai fazer uma adaptação, que seja com total liberdade criativa. Trazer uma obra filmada quadro a quadro é um exemplo claro do que o Moore quis dizer no começo de tudo.
Ao deixar Watchmen, os quadrinhos, ali num cantinho, dentro de uma redoma de vidro, Lindelof tá sendo até cuidadoso demais porque, ao meu ver, se ele tá adaptando, teria direito de mexer no que bem entendesse — se ele ia fazer uma merda como aquele filme do Zack Snyder, paciência. Mas, por exemplo: apesar de desgostar de mais de 2/3 do filme de 2009 e desgostar de grande parte de suas decisões criativas, eu ADORO que tenham usado o próprio Manhattan pra substituir o bucetão alienígena gigante como catalisador do plano de Ozymandias. Adaptação dele, gente. Ele, enquanto criador, faz o que bem entende.
Claro que ele falou sobre o Alan Moore ser punk e, portanto, podia ter embarcado na pegada DIY, criando algo 100% novo — como o inglês, aliás, fez quando não pôde usar os personagens da antiga Charlton Comics. Em resumo, sim, ele podia fazer uma série totalmente nova e não chamar de Watchmen. Claro que podia: de novo, material NOVO faz falta. Mas nesta caceta de ambiente corporativo, os personagens que o Moore criou não são dele, assim como o Miles Morales não é do Brian Michael Bendis e a Marvel faz o que bem entender do moleque. Tendo estes brinquedos em mãos para rolar na caixa de areia, portanto, nada mais justo do que fazer um trabalho bem feito, portanto, certo? Ou é isso ou então ninguém nunca mais lê um gibi do Homem-Aranha ou do Batman na vida.
Mas Lindelof tá indo além. O cara tá usando a ambientação de Watchmen pra criar algo novo, moderno, atual, que fala com os dias de hoje. Tá ousando ao inserir novas tramas, novos personagens — como a própria protagonista, que não existe nos gibis, por exemplo. Tá mais do que apenas adaptando. Mas tá CRIANDO em cima.
“Tudo que posso dizer é que AMO o material original”, Lindelof fez questão de ressaltar. “Passei por um período intenso com medo de foder com tudo. Na verdade, não estou inteiramente certo de que saí deste caminho. Mas tenho um tremendo respeito por isso. E tive que me separar um pouco desta incrível reverência para assumir alguns riscos”. E tá certíssimo.
Eu mesmo já fui esta pessoa que tinha na ponta da língua o argumento de que Watchmen é ~infilmável, que seria um absurdo alguém mexer nesta obra, que ela deveria ser deixada intacta para todo o sempre, que Alan Moore é um deus à prova de balas. Quando anunciaram as HQs Antes de Watchmen, fui lá, esperneei, dei chilique. Até que li os diachos dos gibis. Alguns achei ruins, mas de outros gostei bem. Porque não era alguém dizendo “a sua Watchmen não existe mais, mudamos tudo, tá proibido de ler”.
Saca a lógica do “ai, estragaram a minha infância?”. Então. Vocês tão fazendo IGUALZINHO.
Os personagens são da DC, eles têm direito de fazer o que bem entendem, chamaram caras que colocam Alan Moore num pedestal e eles fizeram histórias bastante respeitosas, eu diria. Que tinham o CLIMA de Watchmen mas eram outra coisa. Se você acha o resultado final bom ou ruim, aí são outros quinhentos.
O mesmo vale pra esta série. Li uma galera chamando a parada de “caça-níquel”. Gente, então: HBO, tá. Não é um canal comunitário. Eles são um gigante do entretenimento cujo objetivo é GANHAR dinheiro. Assim como a Warner, a DC, todo mundo envolvido nos créditos finais. Audiência traz anunciantes, enfim, vocês já sabem como joga este jogo (ou pelo menos deveriam).
Mas, se no meio disso, tem um cara disposto a fazer uma parada legal com Watchmen, um cara que quer apostar, criar, e ainda reforçando o quanto gosta da obra original e está disposto a respeitá-la, um cara que está disposto a fazer arte com potencial de reflexão e provocação política e social, com potencial de levar esta discussão de uma maneira ampla e aberta pro público em geral, sério... Conta comigo. SEMPRE.
Eu AMO o Alan Moore. Mas ficar endeusando o cara como uma divindade intocável e cuja assinatura torna tudo sagrado é a coisa MENOS Alan Moore que existe. Eu sei. Você sabe. E ele também sabe.