No que isso mudaria o quão interessante é o personagem? Sinceramente, não sabemos responder
Tudo começou com a coluna de cartas que Robert Kirkman mantém na HQ de The Walking Dead – lá, o criador e roteirista responde questões sobre qualquer assunto, incluindo, obviamente, a bem-sucedida adaptação da trama para a TV. Na mais recente, da edição de número 130, Kirkman surpreendeu os fãs ao comentar um assunto particularmente espinhoso: a sexualidade de Daryl Dixon, vivido por Norman Reedus.
Você acha que ninguém se interessaria pelo assunto? Bom, parece que alguém se interessou o bastante para perguntar “existe alguma possibilidade de Daryl ser gay?”. Kirkman foi direto: “tudo que posso dizer é que isso já foi discutido”. E complementou: “temos ideias muito específicas sobre a sexualidade de Daryl (ou a aparente falta dela) e, se existir um período de paz no programa no qual ele não esteja sendo constantemente distraído com a atividade de atirar flechas, vamos tratar disso”. Mais tarde, quando questionado a respeito da possibilidade da emissora AMC aceitar que Daryl fosse gay, Kirkman apenas disse: “Somente para registrar, mas é claro que eles deixariam”.
E é isso. Ou deveria ser. Mas tem muito mais texto aqui pra baixo então você imagina que o assunto não acabou por aí. :P
Eu, do ponto de vista criativo, acho a ideia ótima. Pode ser que abordar, de alguma forma, a sexualidade do personagem, não seja necessário? Pode, claro. Poderíamos passar 286 temporadas sem tocar no assunto e tudo bem. Mas Kirkman, que sempre tomou decisões bastante polêmicas e controversas nos quadrinhos, já deixou claro infinitas vezes que The Walking Dead não é sobre zumbis em um mundo pós-apocalíptico – mas sim sobre os dramas humanos que têm como pano de fundo zumbis em um mundo pós-apocalíptico. Ou seja, mostrar como um sujeito lidaria com sua sexualidade, que no mundo “normal” já seria sujeita a questionamentos e enfrentamentos, em uma ambientação dura e ríspida como esta, me parece uma ideia criativa bastante interessante, com grande potencial para se explorar.
Até o próprio Reedus, em tom jocoso, parece ter se empolgado com a ideia – pois andou postando fotos em sua conta no Instagram que, bem, falam por si mesmas.
Mas tenho a impressão de que nem todo mundo concorda comigo e com o Reedus, este lindo.
Enquanto alguns discutem se isso seria uma forma de explorar os dramas de Paul “Jesus” Monroe, personagem das HQs que saiu do armário (e que é tão machão e badass quanto o próprio Daryl, leia-se), outros revelam a sua torcida para que ele fique com Beth ou Carol. No entanto, como você bem podia imaginar, a conversa acabou tomando oooooooooutros contornos para uma base considerável de fãs, em especial no que diz respeito ao Brasil.
“Se transformarem ele em gay, que se preparem para uma queda drástica na audiência e um bombardeio de criticas e xingamentos pela internet”, afirmou um comentarista em um fórum de um site brasileiro especializado em séries (sim, quebrei a sagrada regra e fui ler os comentários). “Tá ficando um saco, tão querendo enfiar o tema gay em tudo, desde uma porra de um quadrinho, até um personagem de uma série que nunca teve nada a ver com isso. Eu fico me perguntando, qual a merda de relevância de abordar o tema numa série de apocalipse zumbi? Uma coisa é ter gay em Glee, Vampire Diaries e esse tipo de série, que tem tudo a ver com o tema”, completou, com chave de ouro. “Era só o que faltava, The Walking Dead se tornar o conto amoroso gay do domingo”, comentou outro. “The Walking Dead não é novela das oito”. E para fechar, uma garota arrematou: “O Daryl é durão demais pra ser gay. Acho que isso seria muito improvável pra um personagem tão badass como ele”.
A questão central parece mesmo ser esta última. Afinal, o estereótipo gay reza que todo homossexual tenha que ser um viadinho afetado, de fala mansa, mãozinhas moles, andar saltitante e uma dezena de palavras-chave saídas diretamente do divertido jargão das bibas. No mundo da cultura pop, o gay é bem aceito apenas para fins humorísticos. O grande anti-herói da série, o sujeito mal-encarado, o porradeiro, não pode jogar no outro time. Porque ele é macho. E macho que é macho gosta de mulher. Certo?
“Eles vão estragar a série de vez”, confidenciou ao JUDÃO uma fã da série, visivelmente consternada com uma declaração que, até o momento, não chega nem perto de ser uma carta de intenção. Ela, no entanto, pediu para não ser identificada. “Daryl é o cara mais tesão na televisão hoje. Não tem a menor chance de isso acontecer. Se o Kirkman tomar mesmo esta decisão, vai ser puro marketing. Vai ser só pra aumentar a audiência da série”.
(INTERLÚDIO: Senhoras e senhores, tenho um segredo para lhes contar – programas de TV precisam ter audiência ou então eles saem do ar. Um programa de TV é um produto e, como tal, tem que ser comercialmente viável. Só pra constar.)
Ainda questionei, curioso, se ele ser gay mudaria qualquer coisa incrível que já fez ao longo da série. “Claro que sim, porra!”, me disse ela, com palavrão em tom exacerbado e tudo mais. “Muda tudo”. Ouch.
A reação esquentada e apaixonada lembra bastante aquela que pôde ser vista quando a Marvel enfim resolveu casar o integrante clássico da Tropa Alfa, Estrela Polar, com seu namorado de longa data. Ou quando a DC tomou a decisão de que, na cronologia paralela da Terra-2, o Lanterna Verde original, Alan Scott, seria gay. Ou ainda quando rolou aquela trama na qual o Wolverine de uma realidade alternativa tinha um caso barbado com o semi-deus Hércules. Basta procurar a área de comentários relativa a qualquer uma destas notícias, preferencialmente em um site brasileiro, para entender do que estou falando.
Até mesmo James Robinson, escritor de HQs responsável por esta nova leitura do Lanterna Verde, ficou espantado com a falta de educação e agressividade dos nossos conterrâneos nas redes sociais e prometeu que o próximo namorado de Scott seria alguém nascido por aqui... :D
Minha gente querida, sinto estragar a graça de vocês. Mas dá pra começar lembrando de um certo Midnighter, vigilante noturno de hábitos sanguinários que é a versão ainda mais ousada e agressiva do Batman, criada por Warren Ellis para o gibi The Authority. Adivinha só com quem ele é casado? Com Apollo, um arquétipo típico do Superman. Resultado? Um casal abertamente gay, inspirado numa relação abstrata entre Batman e Superman. Se o Batman fosse gay, quer dizer que ele seria menos fodão? Que ia botar menos medo na bandidagem? Que a capinha dele teria que ser necessariamente cor de rosa? Pffffffff. Midnighter arrebentaria o seu nariz se te ouvisse dizer isso.
Essencialmente, estamos dizendo que os heróis do tipo BADASS não podem ser gays, é isso? Calma, não responda ainda, não precisa. Porque eu deixo a palavra com ninguém menos do que o músico inglês Robert John Arthur Halford – que atende pela alcunha de Rob Halford, vocalista do Judas Priest.
Líder de uma das maiores instituições do heavy metal, Halford teve coragem de se assumir gay em um cenário de couro e correntes, embalado por músicas que falam de batalhas, fogo e uma exaltação suprema à testosterona. Careca, de óculos escuros e com uma barba mefistofeliana, o cantor assume seu papel no palco transbordando poder. É o macho-alfa supremo, o auto-proclamado “metal god”, incitando a plateia a bater cabeça enquanto adentra o palco a bordo de sua motocicleta. Praticamente um super-herói. Em resumo, BADASS até dizer chega. Se você procurar BADASS no dicionário, não vai ter a foto do Daryl. Vai ter a foto do Halford.
Antes de sair do armário, o músico achava que não seria aceito pelo seu público, que os fãs de heavy metal o rejeitariam. “Tinha este medo ilusório de que ninguém mais me veria como um cantor de metal e de que destruiria a banda por causa de minha associação com eles”, afirmou, em entrevista ao jornal britânico The Guardian. “Era uma paranoia auto-imposta”. Nada disso aconteceu. As vendas de álbuns se mantiveram, os shows continuavam lotados, o fanatismo nunca se esvaneceu. Halford filosofa: “Eu acho que fiz algumas pessoas confrontarem questões que elas não estavam preparadas para lidar”.
Halford matou a charada. Se Robert Kirkman e o time de roteiristas da série forem adiante com isso e tomarem esta corajosa e ousada decisão, vão ter que lidar com uma verdadeira virada na cabeça das garotas que estavam apaixonadas pelo jeito bad boy de Daryl, o doce cafajeste – enquanto boa parte dos rapazes que se inspiravam no estilo selvagem do arqueiro, um rebelde de poucas palavras que mata primeiro e pergunta depois e que tem pouco respeito por autoridade ou hierarquia, vão ter que se conformar de que Daryl continua sendo tudo isso. Só que ele gosta de homens.
Ter um matador frio e calculista como ídolo pode. Ele só não pode gostar de outro homem. Aí não, tá errado.
Putz. Faz mesmo um sentido danado.