Com o Novo Super-Man, a DC Comics resolveu lidar com o seu passado xenófobo | JUDAO.com.br

Reflexo de uma época na qual os chineses eram vistos como um perigo para os americanos, o vilão Chin Lung está de volta para enfrentar o Super-Man. Só é uma pena esse passado continuar parecendo tão real…

No meio de toda expressão cultural, se você remexer o que foi produzido nos últimos sei lá, 100 anos, vai encontrar muito preconceito, racismo e ofensas. Tudo produto daqueles tempos, daquele contexto, que muita gente prefere esquecer, ao invés de aprender com o que aconteceu — erro que a DC Comics prefere não cometer.

Na última semana, a editora ressuscitou um dos seus mais polêmicos vilões nas páginas da revista New Super-Man, aquela estrelada por uma versão oriental do Homem de Aço e escrita por um americano com ascendência chinesa, Gene Luen Yang. Um vilão que é JUSTAMENTE a primeira face reconhecível da editora.

Tudo começou em 1937, quando a primeiríssima edição de Detective Comics foi publicada pela então pequena editora que levava o mesmo nome, a Detective Comics Inc. O Superman não tinha sido criado e, na época, eram os personagens detetivescos que dominavam o imaginário popular – justificando o título da revista — com os chineses sendo os vilões preferidos, dando as caras em três das nove histórias presentes naquela primeira edição.

Trata-se do famoso “yellow peril”, ou “perigo amarelo”, uma metáfora racista iniciada na época do colonialismo, que colocava os asiáticos como uma ameaça ao ocidente. Nos EUA, esse sentimento cresceu a partir de meados do século XIX, quando começaram a empregar trabalhadores chineses com pouca escolaridade no lugar de americanos brancos. Isso fez crescer o ódio contra os imigrantes, inclusive com editoriais em jornais afirmando que “chineses não são civilizados [...] e todas as mulheres são prostitutas da pior ordem”. Com um movimento tão forte, a imigração chinesa foi proibida em 1882, algo que durou até 1943. Ainda assim, por mais 20 anos, estes asiáticos não tiveram direito à propriedade nos EUA.

(Sim, se você trocar nacionalidades e datas, parece que estamos falando do mundo atual)

De certa forma, essa proibição (e as que vieram depois, colocando “cotas” por etnia) serviram para jogar os chineses que viviam nos EUA ainda mais no submundo, perpetuando a visão xenófoba e os colocando em ENCLAVES étnicos, como as Chinatowns existentes em San Francisco e Manhattan. Nos anos 1930, quando a DC surgiu, o estereótipo da ameaça amarela era extremamente difundido na cultura americana, sendo visto no cinema, literatura e quadrinhos. Quer fazer um vilão que amedronte o público logo de cara? É simples: carregue em traços asiáticos.

Por isso a capa de Detective Comics #1: mais do que os mocinhos ainda pouco-conhecidos, era o “perigo famoso” que iria bombar as vendas do gibi. E essa imagem entrou para a história como o início de tudo para a DC Comics.

Efetivamente, o chinês daquela imagem não estava em nenhuma das histórias no miolo, apesar dele se parecer com alguns personagens retratados nelas. O vilão – ou, ao menos, alguém muito parecido com ele – só foi realmente ganhar um nome em Detective Comics #6: Chin Lung, que apareceu na seção estrelada por Bruce Nelson, um detetive criado por Malcolm Wheeler-Nicholson (que também era o editor do gibi e publisher da então pequena DC). A história seriada, The Claws of the Red Dragon, trazia diversos personagens genéricos que, até então, eram chamados apenas de “homens chineses” e “chinês alto”.

Quase que instantaneamente, fica definido que Lung dominava o submundo da Chinatown de Manhattan. Ainda assim, ele foi derrotado por Nelson em pouco tempo, sendo morto na edição 8 da revista. O vilão nunca mais apareceu e, na edição 27, Detective Comics começaria uma drástica mudança com um personagem inicialmente chamado de “The Bat-Man”.

O mundo seguiu seu curso e o tal do perigo amarelo foi influenciando diversos outros personagens do imaginário popular – incluindo, de certa forma, até o visual dos Klingons na série original de Star Trek ou mesmo o Dr. Zin de Jonny Quest. Porém, no mundo de hoje, a China é um mercado interessante demais para ocidentais encherem o bolso de dinheiro, principalmente com cinema. São 1,3 bilhão de pessoas que, nos últimos anos, foram apresentados aos produtos ocidentais.

Aqui entra Kenan Kong, o novo Super-Man. Diferentemente da visão xenófoba dos anos 1930, a ideia aqui é construir um personagem que tenha realmente apelo para a comunidade chinesa – primeiro a dos EUA e, quem sabe depois, na própria China. Por isso foi escolhido o roteirista Gene Luen Yang, de ascendência chinesa e que chamou a atenção da crítica com a graphic novel American Born Chinese.

A última página de New Super-Man #8

Na edição 8 de New Super-Man, publicada no último dia 8 de Fevereiro, Yang introduziu o vilão responsável por todos os problemas do herói: Ching Lung. O passado xenófobo voltou, com um G a mais.

Yang explicou os motivos da escolha numa entrevista ao Washington Post. “O Rebirth [a nova fase da editora] é sobre abraçar a história do Universo DC, então temos que voltar bem para o começo, certo? Se nós queremos realmente abranger o que nós somos como americanos, temos que olhar para tanto o bom quanto o mau, o bonito e o feio de nossa história. O renascimento é sobre recuperar muito do passado da DC, então nós temos que examinar a parte feia, também. É isso que nós esperamos fazer”.

É por isso que Lung aparece exatamente como naquelas HQs dos anos 1930, inclusive sendo introduzido numa splash page que mimetiza a capa de Detective Comics #1. “Eu pensei que se nós déssemos um novo visual para Ching Lung, nós na verdade estaríamos introduzindo uma nova forma de perigo amarelo. E isso é algo que definitivamente eu não estou interessado em fazer”, disse o quadrinista. “Minha proposta não é necessariamente acabar com os velhos estereótipos, ou fazer comentários sobre eles. Minha esperança é que, no final da história, um longo arco que lida com Ching Lung, o leitor possa ver tanto como um comentário do passado quando uma evidência de como fomos longe”.

Agora, será que o público vai entender a mensagem? “Nós pensamos muito sobre o isso. Eu penso nas duas emoções dominantes que eu tive com a publicação da edição número 8: tenho medo de como os leitores vão ver isso, e eu sinto orgulho”, completou o autor.

O novo Lung apareceu apenas em uma página, por isso ainda é cedo pra entender as motivações do personagem ou pra onde a HQ irá. Porém, uma das grandes armas de um roteirista ou escritor é pegar estereótipos não para criar personagens planos, mas para introduzir ali twists inesperados, transformando-os em personagens tridimensionais interessantes. Um exemplo prático é o próprio Clark Kent: o estereótipo do homem pacato e gentil, que sabe lidar mais com as palavras escritas do que com as outras pessoas. Só que, ao abrir a camisa e mostrar o ‘S’ no peito, ele se transforma no Superman.

As coisas ficam mais claras quando olhamos para o trabalho de Yang. American Born Chinese é, ao mesmo tempo, um olhar carinhoso sobre a cultura chinesa, sobre como os orientais muitas vezes se vêm obrigados a adotar a cultura dos EUA para deixarem de serem identificados com os estereótipos e como eles, nesse processo, acabam ignorando algo que faz parte do que são.

“DC começou com essa imagem do perigo amarelo. É basicamente um personagem bidimensional estereotipado que foi usado para desumanizar todo um povo. E agora a DC está levando o seu símbolo mais importante, o ‘S’ do Superman, e colocando-o em um personagem chinês. É assim que se cria um herói chinês de três dimensões”, finalizou Yang.