De Case a Motoko: o cyberpunk na cultura pop | JUDAO.com.br

Conversamos com três especialistas (e, claro, também fãs) do gênero para falar sobre suas origens, suas influências e seu olhar mais crítico e social

A ficção científica não tem obrigação de prever o futuro. A frase de Lady Sybylla, do Momentum Saga, já deixa clara não apenas a função do cyberpunk enquanto subgênero sci-fi, mas também de toda e qualquer visão de futuro na cultura pop. “Ficção científica é ficção por um motivo, não Madame Zelda Cartomante. Mas é possível apontar tendências”.

Mas, exatamente como a gente falou no nosso editorial, o mundo de hoje está mais próximo do cyberpunk do que nunca. “O cyberpunk acabou mostrando um futuro onde as diferenças se acentuaram, ao invés de diminuir, como temos visto hoje em dia com o acirramento das políticas externas dos países, o preconceito sendo adotado como política de estado”, diz ela. “Enquanto temos cada vez mais acesso à tecnologia e ao ciberespaço, mais excluímos as pessoas, mais acentuamos a distância entre o poder da política e das corporações, do povo”.

Autora de série de noveletas cyberpunk REQU13M, além da Wired Protocol 7: um estudo sobre Serial Experiments Lain e a alucinação consensual do ciberespaço, a jornalista e mestre em semiótica Lidia Zuin arrisca dizer que, nos dias de hoje o cyberpunk perdeu um pouco do seu grande destaque, principalmente enquanto gênero literário, justamente porque, à época do “surgimento”, ele era como se fosse um alerta de algo que estava próximo, mas não acontecia ainda. “Hoje, muitos dos temas do cyberpunk já são reais e estão entre nós. Tanto que, depois da popularização de Black Mirror, as pessoas começaram a falar que tudo é ‘muito Black Mirror’. E o engraçado é que, talvez 15, 20 anos atrás, Black Mirror poderia ser tido como cyberpunk com certeza. Mas hoje a gente pensa nele só como uma pequena extrapolação do que já está acontecendo”.

Lidia destaca ainda que próprio William Gibson, autor do icônico Neuromancer, parou de escrever histórias cyberpunk para fazer uma ficção mais contemporânea, com algumas extrapolações – tem sido assim desde Reconhecimento de Padrões, de 2004, sobre a coolhunter Cayce Pollard. “O grande problema é que, assim como o cyberpunk nasceu distópico, algumas obras podem acabar na dicotomia de ‘tecnologia = ruim’ e passar uma mensagem apocalíptica sobre os temas abordados”.

Voltando um pouco no passado, até para contextualizar: o termo ‘cyberpunk’ foi popularizado por Gardner Dozois, um dos editores da revista Science Fiction, do mestre Isaac Asimov, num artigo para o jornal Washington Post intitulado “Science Fiction in the Eighties”. No texto, ele se referia justamente a uma nova leva de escritores de ficção científica nos EUA que ficaram conhecidos como “O Movimento”.

“Acredita-se que, muito provavelmente, a palavra tenha sido cunhada pelo escritor Bruce Bethke com a história Cyberpunk, de novembro de 1983”, conta o estudioso Roberto Fideli, que focou toda sua tese de mestrado na análise de discurso de Ghost in the Shell e da série Neon Genesis Evangelion. “Se eu soubesse, teria registrado esta palavra”, afirmou Bethke anos mais tarde, a respeito do título de seu conto sobre um grupo de hackers adolescentes.

De qualquer forma, enquanto gênero literário, o cyberpunk se consolidou principalmente com o fanzine Cheap Truth, editado pelo escritor Bruce Sterling, que na época usava uma série de pseudônimos e defendia a nova estética como um rompimento e um manifesto de renovação da ficção científica clássica, de autores como Isaac Asimov e Arthur C.Clarke, para algo que fosse menos “para os pais verem”, com sexo e com violência de verdade. Sterling também foi responsável pela antologia Mirrorshades que, em 1986, reuniu obras de autores como Marc Laidlaw, Tom Maddox, James Patrick Kelly e Greg Bear, todos interessadíssimos neste novo jeito de contar histórias sobre o futuro.

“O estilo foi tido como um ‘salvador da ficção científica’ quando surgiu, pois teria revitalizado o gênero, saturado com utopias como Star Trek e space operas”, explica Sybilla. Uma coisa, no entanto, é consenso: o principal responsável por fazer a ambientação do cyberpunk saltar pra fora do nicho literário e cair nas graças de toda uma geração de quadrinistas, ilustradores, cineastas e a porra toda foi William Gibson, considerado por muitos ainda o maior autor vivo de ficção científica.

Depois de usar o termo “ciberespaço” pela primeira vez no conto Burning Chrome, o cara escreveu o tal do Neuromancer (1984), primeiro livro da chamada “Trilogia Sprawl” do autor, seguido de Count Zero (1986) e Mona Lisa Overdrive (1988) . Basicamente, estamos falando da história de Case, um hacker que caiu em desgraça depois de tentar roubar seus patrões e perdeu a capacidade de se conectar à rede. O cara é encontrado por Molly, uma mulher misteriosa, que está numa missão que envolve Case e é liderada pelo misterioso Wintermute. Troque os nomes por “Neo”, “Trinity” e “Morpheus” e você vai entender quem buscou referências aqui. ;)

Sybilla conta que Neo se encaixou como uma luva em um dos pilares do cyberpunk: a figura do herói está centrada no papel de pária dessa sociedade. “Aliás, no cyberpunk os párias, os criminosos, os excluídos, costumam ter destaque”, diz. “Há sempre um ambiente de dominação, com sociedades marginalizadas, no qual a população é controlada por algum sistema repressor”. Lidia completa relembrando que uma obra cyberpunk traz a tecnologia e a ciência como uma referência para pensar questões mais ‘humanas’, por exemplo política, filosofia, psicologia, religião. “Esse era o diferencial dos primeiros escritores cyberpunk: eles eram designers, publicitários, jornalistas, enquanto que os autores mais antigos, como o Asimov e Clarke, eram matemáticos, físicos, biólogos...”.

Justamente por isso, a escritora afirma que “reflexão e questionamento” são os grandes diferenciais entre uma obra boa e uma obra ruim no cyberpunk. “Se antes os filmes podiam até ser feios e com efeitos especiais toscos, ao menos alguns deles tinham questionamentos profundos e reflexões interessantes. Com a evolução e barateamento do CGI, a gente acabou ficando com obras cheias de efeitos especiais, mas que não passam disso, não têm um bom roteiro e sequer uma reflexão”, afirma.

Além de Matrix, Ghost in The Shell e, claro, Blade Runner, ela diz que o fã que se interessa pelo tema deve procurar filmes mais alternativos tão bons ou até melhores do que estes nomes mais conhecidos – como Estranhos Prazeres (de 1995, dirigido por Kathryn Bigelow), Avalon (também dirigido por Mamoru Oshii) e Nirvana (produção italiana de 1997). “Depois dos anos 90 e começo dos anos 2000, quando o cyberpunk teve seu auge no cinema, o subgênero continuou presente no cinema, mas mais como um tema e não como uma estética em si”.

Para Roberto, é importante que se diga ainda que mesmo Ghost in the Shell não traria, pelo menos em teoria, nada “de novo” para o gênero, de “revolucionário”. Porém... “O que ele faz, com muita habilidade, é submergir sua estética cyberpunk em um contexto puramente japonês, tendo em vista que, na época de sua produção, o Japão era líder na produção de eletroeletrônicos e também um país muito industrializado que passou por uma revolução urbana em uma velocidade muito grande” explica. “Além disso, ele também insere questionamentos espirituais que não nos parecem muito comuns na literatura de ficção científica”.

O ponto é que, conforme uma reportagem do jornal The Guardian deixa claríssimo, esta mistura de Ghost in the Shell mexeu com a cabeça das irmãs Wachowski tanto quanto o próprio Neuromancer. Tanto que, quando a dupla estava CORTEJANDO os produtores para produzir a saga de Neo, chegou a apresentar um DVD da animação japonesa dizendo “queremos tornar isso realidade”. Ou, bom, quase aquilo, né.

“Parece que Hollywood realmente era assombrada por Ghost in the Shell, pois já adaptou tantas partes do enredo que o Ocidente já está bem familiarizado com ele”, diz Sybilla. “Já me perguntaram isso centenas de vezes”, respondeu mais uma vez, meio contrariado, o diretor do anime, Mamoru Oshii, ao periódico inglês. “Francamente, é meio chato e acho que as Wachowski pensam o mesmo. Acho Matrix um filme divertido, mas prefiro seu primeiro filme, Ligadas pelo Desejo (1996)”.

Calma aê, seu Oshii. Tem muito mais filmes pra galera te perguntar nos próximos anos. Roberto lembra, por exemplo, que James Cameron também se inspirou no filme e no mangá para a produção do longa Avatar, de 2009, no qual humanos podem “transferir” suas consciências para RECEPTÁCULOS geneticamente desenvolvidos.

Um certo A.I.: Inteligência Artificial, de Steven Spielberg (outro fã assumido da animação), também pega emprestado muito da estética de Ghost in The Shell, assim como seus questionamentos sobre consciência e almas em indivíduos sintéticos. “Além desses, vale mencionar a série Dollhouse, criada e produzida por Joss Whedon, no qual agentes secretas têm suas memórias apagadas e substituídas”, relembra Roberto.