Dessa vez a síndrome de vira-latas foi longe demais | JUDAO.com.br

A verborragia de Azealia Banks contra Pabllo Vittar tem muitos lados – mas a gente queria, antes de qualquer coisa, se focar num determinado aspecto da discussão

E aí que quem acompanha as efervescentes novidades do noticiário pop e/ou do mundinho das celebridades, já deve pelo menos ter se deparado com uma manchete, muito provavelmente acompanhada da palavra “polêmica”, a respeito do assunto. Um seguidor foi, via mensagem privada, cutucar Azealia Banks em suas redes sociais, ~exigindo que a cantora se retratasse com Pabllo Vittar por toda a treta envolvendo as duas durante um show que deveria ter rolado em Fortaleza, no ano passado.

Pra quem não faz ideia do que se trata: a rapper americana estava prevista para tocar ANTES da cantora brasileira no festival Pisa Menos. Mas eis que Azealia acabou cancelando a sua participação no evento, tentando posteriormente justificar a um fã que não tinha o equipamento necessário, que o seu camarim era muito menos preparado que o da colega (o que seria um desrespeito com uma “superestrela internacional”, segundo ela mesma) e que não queria descer um degrau – ainda mais porque Pabllo teria tentado “sabotá-la”. Abrir para a brasileira? Nem pensar.

Isso foi em Novembro de 2018 mas, aparentemente, a americana não deu o assunto por encerrado. Na última quinta, 15, além de responder ao sujeito – que afirmou que ela estaria ofendendo toda a comunidade LGBTQ+ local com esta situação não-resolvida – dizendo que jamais se desculparia, chamando inclusive a brasileira de “bitch”, Azealia afirmou que Pabllo não “está arrasando como pensa que está” e a colocou na categoria de artista classe C. “Ela copia o que vê e aí quer exigir respeito de uma artista que trabalhou duro e literalmente sofreu para achar a própria voz”, atacou. “Tomara que ela encontre a sua voz artística”.

Na resposta, que reproduziu em seus Stories no Instagram pra todo mundo ver, a rapper da terra do Tio Sam disse ainda que a nossa drag queen faz um trabalho que é uma cópia em “formato cabaré” do que certos artistas estão fazendo em mercados de nível A. “Sinto que muitos artistas brasileiros têm um estilo forçado, tipo a fase de testes pro American Idol, o que é desnecessário”, complementou ela, numa bronca que sobrou pra todo mundo do lado de cá. Mas tentou aliviar, do jeito dela. “O Brasil tem uma cultura tão rica, profunda e única. Já a nossa cultura americana é tão vazia e pobre”.

Bom... vamos por partes.

Não é, definitivamente, a nossa cara aqui analisar o caso sob esta ótica de barraco: acusação de plágio/cópia, de sabotagem, estas paradas. Isso, de fato, tem uma dose elevada de exagero. Levemos em consideração que a Azealia é conhecida por não ser mesmo de meias-palavras, sendo até de palavras-e-meia, além de ser alguém que já andava bastante de bode do Brasil desde 2017, quando suas redes foram invadidas por comentários em tom de cobrança pouco elogiosos e ela disparou de volta de um jeito bem escroto, que beirou o americano dono de si mandando um “cala a boca” pra estes latinos subdesenvolvidos.

Nem a própria Pabllo, aliás, quis comentar o assunto, quando procurada pela imprensa no mesmo dia dos Stories da Azealia, durante um evento com MC Kekel. Fez bem.

No entanto, a gente quer se focar aqui neste papo dos artistas brasileiros fazerem um pop “copiado” do americano, já que temos uma “cultura tão rica, profunda e única”. Mas, principalmente, nem tanto se aprofundando nos comentários da própria Azealia, e sim nos comentários que alguns BRASILEIROS fizeram na sequência, endossando a cantora gringa e sentando a bota nos nossos próprios artistas.

Síndrome de vira-latas

“Ela [Azealia] tá certíssima, pisou demais, a gente só tem aspirante a diva tentando imitar as estrangeiras, falta tempero nacional”, disse um dos muitos comentários que eu li. O tom era daí pra baixo. Mas vejam só: começando a falar ESPECIFICAMENTE sobre a Pabllo, que tal escutar com carinho o disco que ela lançou ano passado, Não Para Não? Estamos falando de um álbum que pega a música pop tradicional, aquela bombada, de pista de dança, cheia de produção, e mistura com uma porrada de ritmos regionais, bebendo na fonte do forró, do axé, da sofrência e principalmente do tecnobrega.

É um disco Brasil pra caramba, produção sofisticada mas totalmente voltado a balançar a raba na quebrada ou na casa da elite. Tudo com assinatura musical, com um jeitão bem dela. A Azealia que me perdoe, mas ali tem MUITA voz artística.

Vamos avaliar as divas pop brasileiras, portanto, além da Pabllo: talvez nomes como Ivete, Claudia Leitte, Sandy, Gaby Amarantos, Iza, Duda Beat, Ludmilla, Karol Conká, e, claro, Anitta, aquela que é atualmente a maior artista pop do Brasil, gostem vocês ou não. Todas elas são de alguma forma a nossa versão da Beyoncé, da Rihanna, da Lady Gaga, da Katy Perry, da Taylor Swift, enfim. Me diz aí, na sinceridade, se não tem brasilidade no som de cada uma delas? Cada uma com a sua brasilidade, é bom que se diga. Da MPB clássica toda limpinha que a Sandy quer fazer, passando pelo groove da Iza, pelo axé saltitante da Ivete, pela mangue-sofrência da Duda Beat, pelo brega eletrônico da Gaby Amarantos, pelo rap da Karol Conká...

Tão diferentes entre elas quanto uma Lady Gaga é diferente de uma Rihanna, por exemplo. E ambas fazem pop. Ponto.

Quem diabos a gente aqui no Brasil tá copiando mesmo?

Ah, sim, tem isso também, né: o Brasil é um país imenso. E falar da nossa cultura musical é falar de uma porrada de coisas completamente diferentes, distintas. Não dá pra pegar o funk carioca, o vanerão sulista, o frevo de Recife e o carimbó do Pará e dizer que é tudo igual só porque os três são brasileiros, né? O Brasil é grande e diverso o suficiente para que, ainda bem, a gente possa ouvir muito de muita gente diferente. Falar de “cultura brasileira” talvez seja algo tão imenso para qualquer um de nós, algo que precisa ser ouvido de outros jeitos fora da porra do eixo “cosmopolita” Rio-São Paulo... o que dirá, então, para quem tá lá, em outro país. Pega todas estas minas do parágrafo anterior e dá quase pra dizer que cada uma é de um país diferente.

E aí entra, ora pois, uma questão importante aqui: o preconceito cultural que a gente tem com as nossas próprias coisas. Ah, porque tem mesmo. A gente já falou sobre isso no nosso texto sobre a MC Loma, esta relação esquizofrênica que existe no Brasil entre o que é “brega” e a tal da alta cultura. Ou seja, não adianta fazer pop com tonalidades brasileiras se estas tonalidades vierem de fora do espectro do culto, fino, elegante, ou serão ignoradas.

Flash Pose

Muita gente enxergou, na crítica da americana, aliás, uma cutucada DIRETA na parceria da Pabllo com a Charlie XCX no single Flash Pose. Bom, sejamos honestos: aí vale o mesmo olhar pro dueto da Anitta com a Iggy Azalea em Switch. Talvez não pareçam, DE FATO, as produções mais originais de ambas as brasileiras, certo? Muito que bem. Mas estamos falando de canções em INGLÊS que têm um objetivo COMERCIAL muito claro: ajudar a mostrar a cara delas pro mercado internacional. Aliás, digo mais, mais até do que pro mercado internacional, mas sim pro mercado AMERICANO, que ainda é imenso, ainda representa muito, ainda pode abrir MUITAS portas e ser um baita trampolim. Ponto. Mostrar que elas tão preparadas pra brigar de frente por atenção e AÍ SIM mostrar mais das raízes musicais do lado de cá.

Se eu concordo com a estratégia? Aí são outros quinhentos. Confesso que tenho lá minhas questões. Mas que é isso, ah, com certeza é. Isso e, claro, também uma busca de legitimação por parte das nossas artistas, né. Em especial aquelas vindas de ambientes periféricos, que tocam aquilo que é “música menor”, o funk, o axé, o brega. Que só mesmo quando são reconhecidas internacionalmente é que são aclamadas por certas camadas de público aqui no Brasil. Guardadas as devidas proporções, sabe quando os fãs brasileiros de rock só passaram a reconhecer o Sepultura como uma banda GRANDE quando eles estouraram lá fora, antes mesmo de estourar aqui? Bem isso. Elas acabam tendo de focar por um tempo num bate-cabelo genérico pop internacional, mas que vem com grife, com uma cobertura do que é “chique”. Infelizmente, nem todo mundo pode cantar em português, espanhol ou catalão numa situação como esta.

Agora, vamos combinar uma coisa aqui: achar que Flash Pose representa mais a Pabllo do que K.O., por exemplo, não tem como. É ignorar o que ela faz em cima do palco, é não prestar atenção em nada da carreira dela. É sinal de que tem brasileiro ouvindo a nossa música pop tão pouco quanto a própria cantora americana.

“Ela quer exigir respeito de uma artista que trabalhou duro”, disse Azealia. Bom, a gente sabe aqui (ou deveria saber) do quanto uma Pabllo, uma Anitta, uma Gaby Amarantos, uma Iza, Duda Beat. ralaram pra chegar onde chegaram. E fazem pop pra caralho, pop demais. O pop de “popular”, grudento, chiclete, o pop que absorveu o funk da periferia carioca, o samba, o batuque, o pacotão completo.

A gente sabe e a imprensa internacional, ora, ora, também sabe. Porque a própria Pabllo, por exemplo, já tinha chamado a atenção do mundo bem antes do feat com a Charlie XCX, quando virou capa de publicações gringas Gay Times, da Paper, da Subvrt Mag. Ela não estava ali à toa. Porque, no fim, tem bastante gente boa de olho no que tá acontecendo no Brasil.

Pergunta lá pra Madonna se ela não tá BEM ligada no tipo de música que tá rolando por aqui DE VERDADE. Porque se tem alguém que manja de música pop, é essa mulher.

Deu de síndrome de vira-latas duma vez por todas, né.