O gamer sofre. De certo ponto de vista, sem motivo. Mas…
Desde que começamos a gastar centenas de horas na frente da telinha brincando com pixels e emoções complexas, o pessoal que joga joguinho queria ter aquela validação gostosa que só um sucesso no cinema pode trazer. Porém, pouquíssimos são os cidadãos dessa nação que pensam “nós já temos a versão perfeita de nossos personagens amados, nossas sagas queridas. Temos os jogos!”. NÃO. O povo gamer quer um filme. Quer uma adaptação legal. Quer olhar pra tela e não sentir gosto de bílis NOS OLHOS.
Quando o ~mundo nerd finalmente foi chancelado pelo sucesso de O Senhor dos Anéis, e sacramentado como “nunca mais um nicho, gostar disso agora é universal” pelos filmes da Marvel, os gamers ficaram a postos. “Logo será a nossa vez”. É. Pois é.
Você lembra de ir no cinema para assistir Super Mario Bros? Com DENIS HOPPER e BOB HOSKINS? Lembra de ver o RAUL JULIA brincando de Bison num Street Fighter todo errado? Ainda nos gloriosos anos 90, quando o pensamento era “Pra que trama? Joga os elementos dos games aí. Isso mesmo, ator de cosplay e dinheiro no bolso”. Ou quando transformaram a saga de Resident Evil num filme de ação B (não sem seus méritos), ou quando Uwe Boll... sei lá, nasceu?
Havia, claro, o problema filosófico de enfrentar aquilo que todo “defensor do cânone” ignora: cada mídia precisa de um tipo específico de “contação de história”. Você, que ficou no chão esperneando porque mudaram Aquele Aspecto Daquele Personagem Favorito Seu De Quadrinhos na adaptação, tentando proteger a última gota de pureza que sobrava somente na sua cabeça, não entendeu que muita gente muda muita coisa porque CINEMA, GIBI, LIVRO, VIDEOGAME é tudo diferente. E que quando o pessoal ignora isso, eles tentam enfiar conceito cada vez mais bizarro onde não dá.
Esse “medo de ofender o purista” é parte, longe de ser tudo, de porque os games não tinham um filme digno. ENTENDA QUE ISSO É CULPA SUA, puristão. Mais do que isso, por mirar somente em “elementos do jogo na telona”, a produção desses filmes acaba usando os elementos do cinema – fotografia, direção, roteiro – completamente em função desses elementos. E cria um monstro disforme que não é filme, não é jogo, não é perdoável.
Em 1996, a Nintendo lança um game-produto perfeito. Um jogo onde você COLECIONA COISINHAS FOFAS. E, progressão natural disso, COLOCA ELAS PRA LUTAR VIOLENTAMENTE. A rinha transformada em febre. Fazem ainda um ataque massivo de mídia: tem jogo, tem anime, tem mangá, tem álbum de figurinhas. Tem musiquinha. Tem frisson. Conseguiram fazer O UNIVERSO CONHECIDO jogar um maldito de um JRPG. Sabe Final Fantasy, aquele jogo que, se você não joga, conhece só um primo muito antissocial que não só ama, MAS VIVE? É o mesmo gênero, mas com apelo. E décadas depois, alguém inventa uma maneira de ENFIAR ESSES DEMÔNIOS NO SEU CELULAR, pra você não ter escapatória e correr risco no trânsito. É claro que iam fazer um filme.
Só que olharam pra trama do jogo. Olharam pra mecânica de “que legal quase matar meu amiguinho fofo denovo e denovo e DENOVO E DENOVO!”. E fizeram a coisa perigosa: jogaram fora o conceito central de mecânica do jogo. Pokémon – Detetive Pikachu é o resultado.
Jogo é jogo, filme é filme.
Tem coisas que não colam nos dois ambientes. Então a ideia de “treinadores, campeonatos e jornadas pelo mundo sem acompanhamento dos pais”, um dos pontos chave das versões mais tradicionais dos jogos, é eliminada nos primeiros minutos de filme. É preciso de um nível de aprofundamento tanto na arte de fazer cinema pop quanto no mundo que você vai adaptar pra conseguir medir “o que é e o que NÃO É a alma desse mundo que eu vou jogar na telona”. E não bastou só usar o princípio da adaptação. Detetive Pikachu ainda verbaliza uma crítica à ideia de colocar o sofrimento de seres vivos e sencientes como forma de entretenimento. E ainda sai do caminho pra construir um mundo onde existe um verdadeiro espírito de colaboração entre os humanos e os monstrinhos. Não mais um elo de, praticamente, escravidão.
O filme pega como inspiração uma das versões bem periféricas dos jogos, um adventure em que um Pikachu falante é um detetive, e lava tudo com uma estética cartoon-realista, mas com baldes de empenho e conectividade. Resultou num enorme fan-service, mas com cuidados que muita adaptação bem maior não recebe.
Talento e coração expostos como medalhas, bem na frente, por exemplo. Justice Smith, interpretando nosso protagonista, nem vai na linha de “nos conquistar pela simpatia”, já que seu personagem é “aquele chato que não gosta de Pokémon”. Porque cada um de nós que jogou Red, Blue, Yellow, Green, Gold, Silver, Purple With White Little Balls, conhece alguém que se recusa a entrar no hype, nadar no hype, fazer amor com o hype. Não entendemos essa gente estranha que não mataria por um Gyarados Vermelho. O Dopinder (O DOPINDER) é o fãnzasso clássico tentando evangelizar o pobre ateu que tem MOTIVOS CRÍVEIS para não entrar no frisson.
MOTIVOS CRÍVEIS. Alguém realmente pensou em CRIAR UM ARCO DE PERSONAGEM ao invés de só colocar os protagonistas num carrossel de referências minúsculas. Digo, as referências estão lá. É o filme perfeito para brincar de “Onde Está o Ditto?”. Mas é louvável que consigam fazer a presença de criaturas CGI fantásticas na tela não desviarem a direção emocional da cena, especialmente em momentos de tensão emocional, quando o personagem está confuso ou em dúvida.
Quando o foco é para ser em Justice Smith, você não fica tão preso naquela “sombra de um Charizard”, naquele inseto alienígena no canto da tela. Porque o design, a fotografia e o ator estão agindo EM FUNÇÃO DA HISTÓRIA. O fan-service é BEM FAN-SERVICE, mas o filme tem elegâncias para o não-iniciado, como explicar com calma o que é o que, quando necessário. O Ditto, por exemplo, tem uma rápida “introdução de conceito” que vai ser útil mais pra frente no filme.
Uma história sobre perda que trabalha alicerces, mesmo que espaçados, pra jornada e pro crescimento do personagem principal. Não há a menor dúvida de que o filme só existe porque o DINHEIRO FALA, mas o fato de que uma equipe criou uma trajetória dramática QUE FUNCIONA, mesmo que seja simples e derivativa, é um salto imenso para um filme “Baseado em Joguinho”. Você vai dizer “Mas Nossa, Isso Não É Shakespeare Né”. Amigo, o resto do mundo também não é Shakespeare, e do jeito que o pessoal lembra do bardo inglês, nem Shakespeare é Shakespeare, certo? Há o que celebrar em termos um estúdio gigante que quer os monstros pelo apelo de “quantos dólares eles revertem” e acharem uma equipe criativa que não só abraça o absurdo e o infantil da ideia, mas colocam CINEMA no meio.
Se nosso Pikachu vai falar, decidiram que o Deadpool é a melhor escolha para tal. Então abram-se alas para Ryan Reynolds se divertir um pouco num estilo “Gênio do Robin Williams”, de onde sai até REFERÊNCIA A SEINFELD. Inventa-se um personagem icônico: não passa dos limites RATED E FOR EVERYONE que o Reynolds ama quebrar, mas não é o ratinho elétrico inocentão desses anos todos. Conseguem criar uma química bacana entre Justice Smith e o Voz-CGI, não só pelo talento do ator (e dos atores do filme no geral). Mas o design escolhido para as criaturinhas acerta na mosca, junto com o CGI perfeito para o filme. E lá vamos nós resolver um mistério cheio de viradas, mas mais do que um simples veículo para artimanhas e piadas. Tem um pai procurando sua redenção, e um garoto descobrindo coisas importantes sobre família e genética avançada.
As reviravoltas rocambolescas, aquele fino e puro nonsense que só mesmo a união entre uma trama JRPG e chá de cogumelo poderia produzir, funcionam? Não todas. Tem degraus demais entre “Vamos resolver esse mistério!” e “Oh não, o vilão quer... O VILÃO QUER O QUE?”. Mas até mesmo nesse núcleo “ainda não entendi o que ele” vemos reflexos do drama central. Um filho que olha para o pai e não o reconhece, e que precisa daquela peça do quebra-cabeça para encontrar a si mesmo. Até mesmo no meio das piadas sobre amnésia, no interrogatório do Mr. Mime, o Pikachu está soltando pistas sobre o drama familiar, com referências a ser alguém que afasta as pessoas.
E pelo menos uma metade do filme está olhando para o cyberpunk, a sublime união do cinema noir com o sci-fi. É uma versão “amigável para crianças”, mas o neon, o submundo urbano e a ética da tecnologia estão lá, nem sempre dramatizados, mas pelo menos compondo o cenário.
A ideia de “reduzir o conceito ao seu mínimo denominador narrativo cinematográfico” não foi tão ruim assim. Não machucou ninguém ter Pokebolas serem identificadas como coisas ruins
Mas nem tudo são flores. Detetive Pikachu tem um balde cheio de defeitos, dos quais o desperdício de Ken Watanabe não é o menor. Seus conceitos são muito mais acessíveis ao fã imediato, mas nem tem muito como reclamar disso quanto temos Vingadores alcançando 3 bilhões de dólares na(s) sala(s) do lado. É outro daqueles filmes que precisa agradar adultos e crianças, e não consegue replicar a “fórmula Pixar” com desenvoltura.
Mas acredito que na hora H do desenvolvimento, tiveram a presença de espírito de jogar fora o que não funcionava no conceito central e pensaram: como colocar coração nessa história?
Porque coração deveria ser o centro. A razão. Talvez não o começo, mas certamente o fim.
E no fim, a carreira do Uwe Boll se revira no túmulo com cada pessoa sorridente que sai de uma sessão de Pokémon – Detetive Pikachu.
Essa é a primeira produção que adapta um jogo de videogame e consegue criar um “filme genuinamente bom” no processo, algo que pouca gente vai se arrepender de ver no cinema. Vai chegar o dia que veremos “uma obra prima” nas telonas. Mas até lá, Nação Gamer, já podemos dizer que fomos vingados.