Três décadas depois de seu lançamento, segundo álbum do Dokken mostra que insatisfação, quando aliada ao talento, pode resultar em canções memoráveis
Nos anos 80, o Dokken vivia uma situação semelhante à da Guerra Fria que dividiu o mundo nos blocos capitalista e socialista. O clima de ódio começou a imperar antes do grupo embarcar em sua primeira turnê, seguida ao lançamento da bolacha de estreia, Breaking the Chains, nos EUA via Elektra Records. O vocalista Don Dokken achava absurdo receber o mesmo que os demais colegas de banda, uma vez que havia escrito praticamente tudo sozinho. A separação não rolou, talvez na esperança de que a causa de todos os males — dinheiro —, quando viesse em abundância, colocasse um ponto final nos embates. À medida que iam enriquecendo — nem tanto, segundo Don Dokken em Louder Than Hell (HarperCollins, 2013) — e ficando famosos, os atritos entre o vocalista e, principalmente, o guitarrista George Lynch, tornavam-se cada vez mais frequentes e nem mesmo o objetivo comum de engordar as contas bancárias foi capaz de sustentar a relação por mais do que os cinco álbuns registrados no período de 83 a 87.
A história do Dokken começou no final da década de 70, na efervescente cena de clubes de Los Angeles. Certa noite, Don Dokken estava no Starwood assistindo ao show de uma banda chamada Boyz quando o guitarrista simplesmente apagou no palco. Uma ambulância foi chamada. O músico retirado do local de maca era ninguém menos que George Lynch, cujo talento nas seis cordas só não era maior que a ansiedade que sentia antes de cada apresentação. O batera “Wild” Mick Brown e o baixista Juan Croucier completaram o quarteto que assinou com a Elektra. Croucier, por sua vez, não durou muito e trocaria o Dokken pelo Ratt a tempo de participar das gravações do multiplatinado Out of the Cellar. O substituto veio na figura de Jeff Pilson, que além de mega competente no baixo, tinha “o” visual, sacava de produção — hoje em dia, mais produz terceiros do que compõe ou se apresenta — e fornecia um backing vocal campeão.
Não se sabe se por limitação orçamentária — no mesmo Louder Than Hell, Don revela o caráter mão-de-vaca dos contratos da Elektra — ou se a tentativa era estabelecer um “padrão Mötley Crüe”, mas, de fato, o produtor Tom Werman foi colocado na jogada e coube a ele não apenas conduzir o trabalho, assegurando ao Dokken uma identidade sonora, como também acalmar os ânimos de Don e George para que a coisa fluísse da maneira mais indolor possível. Se tem algo que os vídeos bônus do DVD Unchain the Night (2007) mostram é que Don sempre foi o cara serião, o cara “chato” — talvez por ser o mais cascudo no meio musical — enquanto Lynch, Pilson e Brown eram “da zuera”, fazendo todo o tipo de palhaçadas no backstage e em estúdio. Tinha a questão da grana, sim, mas como ignorar essa falta de sintonia que pairava sobre a banda?
E se ódio e falta de sintonia eram palavras-chave do Dokken enquanto banda, Tooth and Nail pode ser classificado como um disco furioso, que carrega em seu âmago tanto esse clima de competição quanto o desejo incandescente de que o trabalho gerasse o retorno financeiro que permitiria, se não a paz definitiva, pelo menos, maior estabilidade e serenidade no futuro. Pois bem, Tooth and Nail viu a luz do dia em 13 de setembro de 1984 e foi questão de tempo até entrar no top 100 norte-americano com cerca de um milhão de cópias vendidas. Os números fora do país não ultrapassaram a casa do um milhão também, mas foi o bastante para a Elektra ficar satisfeita. Se a lógica da época era ter um artista que vendesse bem a ponto de cobrir eventuais prejuízos dados por outros, a Elektra podia ficar de boa, pois tinha o Mötley Crüe na linha de frente de seu elenco.
Em Tooth and Nail, o que se ouve é o Dokken no momento mais metal de sua carreira, com Lynch colocando em prática os ensinamentos de Eddie Van Halen — àquela altura, já uma referência — e Don ainda buscando a melhor maneira de usar sua pequena voz. Tenho para mim que Don Dokken é uma espécie de Roberto Carlos: um fiapo de voz, mas uma capacidade interpretativa fenomenal na qual consegue fingir ter muito mais a oferecer. Diante dessa limitação, o backing vocal de Pilson sobressai — há registros de demos do álbum seguinte, Under Lock and Key (1985), com o baixista cantando, o que pode ser até um indicativo de que a banda, conforme Steve Blush afirma em American Hair Metal (Feral House, 2006), vivia indo e voltando sem parar. E não esqueçamos de Brown, que justifica o porquê de seu apelido ser “Wild”: além do consumo das fileiras e mais fileiras de cocaína, um jeito primata furioso de tocar bateria.
Foram três músicas de trabalho: Just Got Lucky, Into the Fire e Alone Again. Todas tiveram videoclipes em boa rotatividade na MTV, que engatinhava rumo ao topo de ditadora da moda na década. Com um approach mais pop do que o restante do álbum, Just Got Lucky dá continuidade à Breaking the Chains tanto na temática — o camarada que se fode na mão de uma mulher que não vale nada — quanto no caráter baixa renda e péssimo gosto do seu clipe. Ainda sobre vídeos, o de Into the Fire está para o Dokken assim como o de Looks That Kill está para o Mötley Crüe, com direito a mulheres em roupas de couro, maquiagens pesadíssimas e alguma pirotecnia barata. Vale lembrar ainda que tanto Into The Fire quanto a inédita Dream Warriors se tornaram parte da trilha sonora de A Hora do Pesadelo 3, série de filmes de terror estrelada por Freddy Krueger e que costumava fazer bom uso de bandas de hard rock/metal.
Por fim, Alone Again, espécie de embrião das power ballads e mais garantida em coletâneas deste naipe do que eu em festas open bar, torna público o talento de Pilson como letrista e abre caminho para participação ainda maior do baixista no processo criativo dos álbuns seguintes.
Mas não para por aí: a abertura com a faixa que dá nome ao álbum é o que de mais pesado o Dokken já gravou até hoje. A letra revoltosa assinada pelo bloco Lynch/Pilson/Brown ganha tom de réplica na voz de um Don desesperado. Correndo por fora, a lenta When Heaven Comes Down garantiu cadeira cativa nos repertórios de muitas das turnês seguintes — inclusive em algumas mais recentes. A minha favorita, porém, é Don’t Close Your Eyes. Todos os melhores ingredientes estão nela: um riff mortífero em palhetada alternada, um refrão que penetra nos ouvidos com doses de eco e uma letra que beira o tenebroso escrita em rara parceria por Don, Pilson e Lynch.
Já nos sulcos finais, uma linha de Turn on the Action faz um resumo dos próximos capítulos — ao cantar “Forever young but getting older”, Don não fazia ideia de que era questão de tempo até a idade enquanto maturidade levar seu Dokken rumo a voos ainda maiores (apesar de breves) e a si mesmo a aventurar-se como produtor de gente que acabaria fazendo frente ao reinado do grupo que levava o seu nome.