Dolores O’Riordan, uma das vozes mais únicas do rock dos anos 90 se vai inesperadamente e cedo demais, deixando para trás uma trilha sonora que marcou mais do que uma fatia de público
Ler as notícias sobre a partida de Dolores O’Riordan, aos 46 anos, é duplamente doloroso pra mim. Tem um componente profissional, do jornalista especializado em música, que se vê tocado pelo desaparecimento repentino de alguém que ainda teria muito para contribuir, que ainda poderia lançar discos incríveis. Mas também tem um aspecto pessoal fortíssimo porque, durante uns bons anos, The Cranberries foi trilha sonora frequente na minha vida.
Minha ex-esposa e mãe da minha filha foi vocalista de uma banda cover do quarteto irlandês – e eu ouvi praticamente toda a trilha sonora deles, em especial os quatro primeiros (Everybody Else Is Doing It, So Why Can’t We?, de 1993; No Need to Argue, de 1994; To the Faithful Departed, de 1996; e Bury the Hatchet, de 1999), muitas e MUITAS vezes. Em casa, na rua, no estúdio, em tudo quanto é barzinho que ela tocava. Você pode achar que eu tava de saco cheio, na lua mesmo, depois de ouvir aquelas mesmas canções repetidamente. Porra nenhuma. Salvation virou daquelas canções favoritas pra berrar quando eu tava puto da vida. Dreams tornou-se meu hino romântico de pura fofura. E por aí vai.
Mesmo depois que me separei, os Cranberries continuaram sendo uma lembrança incrível de um enorme e representativo pedaço da minha vida, de tantos amores e tumultos. E toda vez que estava sufocado, ansioso, queria fugir, precisava apenas me sentir “em casa”, dentro de uma situação de conforto, bastava ouvir a voz da Dolores pra ficar tudo bem. Virou música que fala mais do que com os meus ouvidos, mas sim com minha alma.
Em um mundo polarizado no qual subitamente todos se tornaram especialistas em técnica vocal capazes de colocar Pabllo Vittar na fogueira sem pensar, aliás, Dolores talvez tivesse sido igualmente crucificada caso a banda alcançasse o estrelato nos dias de hoje. Seu timbre diferente, com uma vibração só sua, sem aquela “limpeza” que se espera de uma diva pop fazendo maneirismos nas notas mais altas possíveis, era uma espécie de assinatura vocal que fazia os fãs reconhecerem de imediato que era ela cantando.
A rouquidão, os trechos meio rasgados, eram ao mesmo tempo capazes de uma limpeza doce, quase pop, e também de uma agressividade emocional que, de alguma maneira estranha e surpreendente, fazia com que ela conversasse com os grunges de Seattle explodindo na mesma época. Muito mais do que qualquer outra banda contemporânea, muito mais até pela performance da própria Dolores, os Cranberries eram uma banda de rock que falava tanto com um público mais pop, radiofônico, esperando pela melodia simples e pelo refrão fácil, assim como com a galera que estava pirando com o bate-cabeça promovido pelos cabeludos de calças rasgadas que se encontraram pós-Nirvana.
Quem ouvia porradaria, podia migrar tranquilamente pros Cranberries sem se sentir “culpado”, basicamente. ;)
Surgidos em Limerick, na Irlanda, no ano de 1989, o grupo formado por Dolores, pelos irmãos Noel (guitarra) e Mike (baixo) Hogan e pelo batera Fergal Lawler não vendeu mais de 40 milhões de discos em todo o mundo à toa. Porque não deva pra coloca-los assim tão facilmente naquela caixinha, hoje bastante limitadora, do “rock alternativo”. Eles eram bem mais do que isso – tem gente que chama de indie pop, pós-punk, folk irlandês. Escolha o seu.
Claro, quando se fala na banda e na voz de sua cantora, é inevitável pensar em Zombie, seu sucesso absoluto e inevitável. Linger, também. Dreams. Mas não apenas eles fizeram uma coleção de canções incríveis, mas também uma coleção de OUTRAS faixas que foram esmagadores acertos, que ao ouvir a gente imediatamente fala “nossa, é verdade, esta música é deles, ouvi muito na minha adolescência”.
Escute cada uma delas. Porque quando um artista se vai, é desta forma que a gente faz o seu legado permanecer: dando o play.