Parceria da dupla tão eletrônica quanto experimental formada por Holly Herndon e Jerrilynn Patton, aka Jlin, conta com uma participação especial que, no fundo, é provocação pura sobre o estado do atual mercado da música
Quando se usa por aí o termo “música eletrônica”, geralmente o senso comum te faz pensar num bate-estaca interminável e irritante que dura uma noite inteira, que coloca uma massa pra dançar na pista com um monte de luzes estroboscópicas piscando pra todos os lados. Apesar de comum, este retrato é tão injusto e reducionista quanto dizer que heavy metal é música de gente vestida de preto vociferando frases ininteligíveis e se batendo por todos os cantos. Pode ser isso? Pode. Mas é muito mais. Assim como a tal “música eletrônica”.
Dizer que a norte-americana Holly Herndon, natural do Tennessee, faz “música eletrônica”, portanto, é uma descrição apurada à princípio mas que nem de longe faz justiça à obra da moça. A começar pelo fato de que seu trabalho não é pra dançar nem nada do gênero. Tá mais pra você ouvir e pensar “cara, mas que porra é essa?”, só que de um jeito bom. Compondo quase basicamente no computador, ela usa a linguagem de programação visual Max/MSP, criada e mantida pela Cycling ’74 especificamente para trabalhos com música e multimídia, para desenvolver seus próprios “instrumentos” digitais customizados e também brincar com os mais diferentes processos vocais.
Com fãs famosos como Björk pra chamar de seus, ela já chegou a abrir shows pra nomes como Thom Yorke (Radiohead) e St. Vincent — o que, bom, ajuda a explicar muito sobre o tipo de canções que ela faz. Música pra ela é estudo de diferentes potenciais e reações, mas também é performance, daquele tipo que choca e causa estranheza. “As pessoas me perguntam o que eu toco e eu digo ‘o laptop’ — e sinto que as caras delas ficam menos contorcidas hoje do que ficavam há dois anos”, diz ela, em entrevista pra Wired. “Mas eu sempre recebo de volta: ‘ah, então você é DJ’, e aí respondo ‘Não, na verdade'”.
Sem medo de ousar, sem medo de experimentar, sem medo de incomodar, esta PhD (literalmente) em composição musical lançou seu último disco em 2015, Platform, uma elogiada e absurda compilação de canções que exploram o nosso relacionamento com a tecnologia, uma espécie de Black Mirror em forma de disco. Na faixa Chorus, por exemplo, Holly usa um software feito especialmente pra ela por seu marido, o artista audiovisual Mat Dryhurst, que gravou os áudios de muitas de suas sessões de navegação pela internet (incluindo aí passagens pelo Skype e pelo YouTube) e depois recombinou os samples para costurar a música de fundo.
Já a curiosa Lonely at the Top é uma parceria com Clare Tolan, apresentadora de um programa de rádio dedicado aos amantes do ASMR (Autonomous Sensory Meridian Response) — totalmente em silêncio, com uns barulhinhos de fundo e uma mensagem pra elevar a sua autoestima praticamente sussurrada pela voz suave de Holly.
Agora, três anos depois, ela está de volta com um novo single, a mais do que estranha Godmother, uma composição ao lado da amiga e “irmã espiritual” Jerrilynn Patton, mais conhecida pela alcunha de Jlin, e também junto com um recém-nascido batizado de Spawn. O caso curioso é que Spawn não é bem um bebê. Ou pelo menos um bebê HUMANO. Mas sim uma inteligência artificial recém-criada. Respira aí, ouve a música primeiro, de preferência prestando BASTANTE atenção neste assustador e incômodo clipe dirigido pelo português Daniel Costa Neves, e aí a gente conversa.
“Nos últimos dois anos, a gente vem reunindo uma banda em Berlim”, explica Holly, no comunicado oficial a respeito deste projeto. “Um dos integrantes é uma inteligência de máquina nascente que chamamos de Spawn. Ela está sendo educada ouvindo e aprendendo com seus pais e com as pessoas próximas a nós que vêm nos visitar ou participam de nossas apresentações”. Os pais de Spawn, no caso, são a própria Holly e o marido. “Spawn já pode fazer algumas coisas maravilhosas. Esta música foi gerada a partir dele ouvindo as obras de arte de sua madrinha, Jlin, e tentando reimaginá-las na voz de sua mãe”.
É isso mesmo. Tamos falando de uma canção que partiu do zero, sem samples, sem overdubs. A máquina “ouviu” e aprendeu a obra e todo o universo conceitual por trás do trabalho de Jlin, que até o momento lançou dois discos (o mais recente, Black Origami, de 2017, chegou a circular nas listas de melhores trabalhos do ano em algumas publicações independentes). Aí, eis que ela criou algo novo, inédito, com base nas referências e conceitos presentes nas faixas de Jlin, sua “madrinha” (daí o nome da canção), só que fazendo uso da voz de Holly Herndon.
“Ao nutrir a nossa colaboração com as capacidades aprimoradas de Spawn, eu sou capaz de criar música com a minha voz que supera em muito as limitações físicas do meu corpo”, explica a artista. O resultado sonoro é, descrito com precisão em um dos comentários do vídeo oficial no YouTube, “como se você tivesse ao mesmo tempo enfiado a cabeça numa colmeia de abelhas e se conectado usando um modem de 56k”. Mas o sabor que fica é ao mesmo tempo interessante, envolvente e assustador. Do jeitinho, creio, que ela bem queria.
Eu sou capaz de criar música com a minha voz que supera em muito as limitações físicas do meu corpo
Ela explica que passar por este processo trouxe questões interessantes sobre o futuro da música. “O advento do sample levantou muitas preocupações sobre o uso ético do material criado por outros [Nota do Autor: como a gente te explica neste texto aqui], mas a era da cultura legível pela máquina acelera e abstrai essa conversa. Simplesmente sendo capaz de TESTEMUNHAR música, Spawn já é muito bom em aprender a recriar estilos de composição ou personalidades vocais. E só vai ficar melhor, o suficiente para que qualquer um que esteja colaborando com ela possa imitar o trabalho ou se comunicar através da voz de outro”.
A pergunta que Holly deixa no ar para os engravatados da indústria fonográfica, que na última década vêm batendo cabeça atrás de cabeça com as muitas questões levantadas pelo avanço digital, é: devemos recuar no caso deste tipo de desenvolvimento e colocar limitações à capacidade de entidades não-humanas como Spawn testemunharem coisas que queremos proteger usando a lei? E aí vem outra questão, mais cabeçuda: “o mimetismo sem permissão é o ponto final lógico de um novo ecossistema musical orientado por dados adaptado cirurgicamente para dar às pessoas mais do que elas gostam, com cada vez menos ênfase na proveniência, ou identidade, de uma ideia?”.
Em resumo: quando uma máquina copia o estilo de um artista e cria algo NOVO, como lidar com isso?
Pra ela, trata-se de um caminho “mais belo e simbiótico da colaboração máquina / homem”, que só existe graças ao legado de caras como George Lewis. Pra quem não sabe de quem estamos falando, trata-se de um TROMBONISTA norte-americano fanático por jazz com bastante improvisação e que foi um dos pioneiros da chamada “música feita pelo computador”. Usando em pleno palco um software chamado Voyager, o cara fazia o computador “ouvir” o que estava sendo tocado e reagir aos músicos se apresentando ali, ao vivaço.
“Caras como ele enxergam nesses desenvolvimentos uma oportunidade para reconsiderar quem somos e sonhar com novas formas de criar e organizar adequadamente”, afirma Holly. “Sobre a aspereza dessa música, eu vejo algo esperançoso. Em meio a muita propaganda enganosa sobre inteligência artificial, ela comunica algo honesto sobre o estado dessa tecnologia: ela ainda é um bebê. É importante ter cautela para ter certeza de que não estamos criando um monstro”.
Sei. A Skynet agradece a consideração. ;)