Morre o mestre José Mojica Marins, o Zé do Caixão, a mais importante figura do horror nacional, que deixa um inestimável legado na cultura pop do Brasil
“O que é a vida? É o princípio da morte. O que é a morte? É o fim da vida. O que é a existência? É a continuidade do sangue. O que é o sangue? É a razão da existência!”
Esse SOLILÓQUIO de À Meia-Noite Levarei Sua Alma, pedra angular do cinema de terror nacional, é narrado por Josefel Zanatas, vulgo Zé do Caixão, o sádico agente funerário de capa preta, cartola, barba e unhas grandes, personagem imortalizado pelo cineasta José Mojica Marins, cuja própria alma foi levada na última quarta-feira, 19 de Fevereiro, aos 83 anos.
O legado de Mojica, não só para o cinema brasileiro mas para a cultura pop como um todo, é de um verdadeiro estardalhaço. Nascido numa sexta-feira 13, filho de imigrantes espanhóis, o gênio do horror nacional dirigiu mais de 40 produções – do cinema transgressor da Boca do Lixo a gêneros distintos como faroeste e pornochanchada – e atuou em mais de 50 filmes, tendo no personagem de Zé (mistura quase dissociativa do criador com a criatura) uma das mais icônicas e importantes figuras culturais, políticas e transmídia de todos os tempos, verdadeira personificação do Übermensch de Nietzsche (o “além-homem” descrito em Assim Falou Zaratustra).
O tal Coffin Joe, como era conhecido lá fora, excedeu os limites continentais de um país que insistia em persegui-lo, censurá-lo e ridicularizá-lo por quebrar paradigmas e atacar a convenção social conservadora com seu cinema de borda em plena Ditadura Militar – a grande responsável por sua ruína, decadência e ostracismo – obrigando-o a ter de explorar a imagem de seu Zé no decorrer dos anos vindouros em todos os cantos, em programas de auditório, candidatando-se em eleições ou apresentando o saudoso Cine Trash (O TERROR DAS TARDE), atividades que apesar de saudosas para alguns só reforçaram cômica e erroneamente um estereótipo pra lá de longe de sua genialidade.
Mas quem só lembra da deprimente cena das unhas gigantes sendo cortadas no Viva a Noite ou do apresentador rogando A PRAGA DO DIA nas tardes da TV Bandeirantes antes de exibir Palhaços Assassinos do Espaço Sideral ou Shakma – Fúria Assassina, precisa conhecer a sua magnífica obra niilista de vanguarda, venerada por gente do calibre de Tim Burton, Christopher Lee e Johnny Ramone — enquanto sempre foi considerado como um produto inferior, tosqueira, por uma sociedade tacanha, críticos esnobes e intelectualóides de plantão em sua própria terra pátria.
Um dos maiores movie maniacs de toda a história do cinema de horror, o cruel coveiro nasceu de um pesadelo que Mojica teve certa noite, quando sonhou que uma figura de capa preta e cartola o perseguiu, até ser arrastado em direção ao seu próprio túmulo, onde estava gravado seu nome e a data de sua morte.
Mojica acordou apavorado e com a ideia do personagem que se tornaria sua marca registrada.
O cineasta já tinha 27 anos e vários filmes em seu currículo, todos devidamente ignorados por público, crítica e distribuidores, quando em 1963 resolveu juntar os alunos de sua escola de atuação, pegou emprestado móveis, objetos cenográficos, construiu túmulos de papelão, roubou arbustos do Largo do Arouche em São Paulo para fazer uma floresta cenográfica e, em um estúdio de 20 metros quadrados no Brás, rodou a maioria das cenas do maior clássico do cinema de horror nacional. Primeiro capítulo da trilogia que incluiria Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967) e A Encarnação do Demônio (2008), ele narra a busca insana do coveiro Zé do Caixão em gerar um filho e perpetuar o seu sangue com a mulher perfeita, custe o que custar.
Mojica teve a pachorra de sempre explorar as idiossincrasias e tripudiar sobre os costumes tão enraizados na cultura popular brasileira, elevando o grau da sua blasfêmia como uma metralhadora giratória de questionamentos morais e religiosos, sem medo de usar de sangue, mortes grotescas, sexualidade e tortura em seus filmes, devidamente pontuados por diálogos mordazes e provocativos. Tudo isso compensando sempre as dificuldades técnicas e financeiras com muita criatividade, usando até cobras e aranhas vivas, diga-se de passagem.
Mas claro que a censura não deixaria barato todas essas heresias, as afrontas à turma da moral e dos bons costumes e ao cidadão de bem, todas atitudes afrontosas em plenos anos de chumbo do nosso país. Como no trágico exemplo do final de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, em que foi obrigado por uma canetada federal a colocar uma resposta moralista e católica na qual Zé do Caixão reconhece Deus como seu legítimo pai e salvador em seus minutos finais e pede perdão para encontrar a redenção na cruz. Sabiamente, a sequência foi descartada na recapitulação de A Encarnação do Demônio, que encerra a trilogia quase 40 anos depois.
Mas o peso do governo militar veio mesmo em O Despertar da Besta, seu trabalho mais marginal, agressivo, nonsense e delirante, produzido em 1969, quando o Brasil passava por um período sombrio de sua história e o clima anticomuna e ufanista – que lembra muito outro período governamental bem mais recente, tá ok? – reinava. Os civis se viam no meio dos confrontos com a polícia e o exército, Costa e Silva já havia decretado o infame Ato Institucional 5 e a censura descia o pau no cinema nacional. E eis que o filme de Mojica, que originalmente se chamaria Ritual de Sádicos, taxado de subversivo, acabou sumariamente proibido de ser exibido. Ordenou-se inclusive que suas cópias fossem queimadas, sendo recuperado apenas na década de 1980.
Isso acabou sendo o suficiente para a carreira em ascensão de Mojica ser destroçada e nunca mais ser a mesma. O cineasta acabou falido e entregue ao vício, dirigindo qualquer coisa por uns trocados e só voltando a ter algum destaque novamente láááááááá nos anos 90 quando o Cine Trash na telinha da Band foi escola para uma geração inteira de garotos fãs do terror, incluindo esse que vos escreve, mas que foram apresentados ao mestre de forma bem mais escrachada.
Engana-se quem relega a presença de Mojica apenas no cinema, pois além de exercer um excelente trabalho de metalinguagem em seus filmes, como no próprio O Despertar da Besta ou em O Exorcismo Negro, Zé do Caixão foi uma das mais bem sucedidas figuras do universo pop brasileiro e um fenômeno multimidiático antes desse termo sequer existir.
Zé dava as caras em quadrinhos, na literatura, no teatro, em programas de televisão (entre eles Além, muito Além do Além, sem dúvida o MELHOR NOME de um programa da TV brasileira) e diversos outros produtos de merchandising, como o Marafo do Zé do Caixão. Zé chegou a virar até marchinha de Carnaval (Eu moro no castelo dos horrores / Não tenho medo de assombração / ô ô ô ô ô ô ô / Eu sou o Zé do Caixão), aproveitando a data, bem às vésperas da folia.
Um vazio impossível de ser preenchido foi deixado na Sétima Arte, e não só no gênero que ele ajudou a criar e popularizar por essas bandas, mas no próprio cinema nacional. O coveiro finalmente descansa em paz.
José Mojica Marins, somos todos muito gratos. E tenho certeza que falo por mim e POR VOCÊ, VOCÊ E TODOS VOCÊ!