Eles não estão em casa: Torniquete | JUDAO.com.br

Fantasia, terror, steampunk, suspense psicológico e ficção. Todos são ingredientes presentes em Eles Não Estão em Casa, coletânea de contos do escritor Douglas MCT (da série Necrópolis) que está em financiamento coletivo no Catarse e deve ser lançada em breve pela Editora Empíreo.

Com projeto gráfico de Marina Ávila e ilustrações de Zakuro Aoyama, os treze contos da antologia têm o comum o fato de que as histórias falam sobre pessoas que saem de suas casas e se perdem de alguma forma – e nunca mais são vistas.

Um passo por vez, o garoto vagueava descalço na escuridão.

O halo da lua refletia no piso um mosaico torto, e o longo corredor parecia menor, devorado pelas sombras. O errante no breu refreava seu avanço. A última janela ficava para trás, um resquício de luz abandonado, somente a cortina branca flamulando no agito do vento como se algo não estivesse em seu lugar, uma peça fora da caixa, perdida entre outras.

Ele dava créditos a sua imaginação como toda criança daquela idade, não mais do que onze ou doze anos. O garoto já tinha ouvido o ruído antes, era diferente dos outros. Todas as madrugadas, sempre após as três, segundo o relógio velho, tic tac, tic tac. Sete dias se passaram até que a curiosidade o puxou para fora do dormitório, onde estaria seguro com os demais órfãos, e o fez atravessar o átrio gris de uma extremidade à outra. Então ouviu o grasnir do lado de fora, e dedos finos e gelados lhe tocaram a nuca. O medo fazia parte de sua quimera pessoal. Inspirou devagar, deixou o ar sair em um bafo pálido que se perdeu no vácuo, mas não conseguiu se mexer. Não sabia se era animal, mas sabia que não era humano. O orfanato era também habitado por uma vintena de gatos velhos, dois cães gêmeos e alguns pombos invasores. Aquele som seria de um corvo? Ele gostaria de ter um corvo, e que fosse albino, seria magnífico como mascote e seu corvejar ajudaria a anuviar outros ruídos do lugar, a jeremiada das crianças, os sermões dos velhos, os gritos das mulheres através das paredes. Mas sabia-se que a barulheira era perpétua.

O grasnir era curto e morria no tempo antes de completar um fôlego, rimbombando nas paredes até ecoar no corredor. Quando consultou outras crianças sobre o ruído, recebeu dedos apontados para o rosto, chacotas altas e desconfiança de todos os lados. Desistia, puxava a coberta e tentava dormir, mas voltava a ouvir o som estranho. Sua insônia nunca colaborou. Mas ali estava ele, diante da grande porta para o pátio, um mármore colossal como se fosse uma mesa de jantar levantada na vertical, que cuspia brisa fria do rodapé até os dedos nus do assustado. Aquele som, na verdade, não sucumbia, ia ter com seus tímpanos para ganhar mais tempo até o próximo susto. Agora, os dedos gelados desciam pelo pescoço até o coração, apertando-o com força, primeiro acelerando seu pulsar, depois congelando onde existira calor.

Sem ruído, a madrugada era apenas escuridão. O garoto pensou estar sendo observado, mas a última janela estava distante dali. Pela fresta abaixo da porta viu um vulto passar e desaparecer no tempo de uma respiração. A curiosidade era mais forte do que ele e o arrebatou até a fechadura do tamanho de seu nariz. Por aquele pequeno portal até o outro mundo – o lado de fora – ele a viu. A luz de um poste que insistia em oscilar revelou a criatura de cabelos escuros descendo lisos como sombras pelo corpo pequeno e esguio sob um camisão vermelho. O olho do garoto agora era maior do que a fechadura. Descobriu que conseguia suar mesmo na invernia. As pernas nuas da criatura não pareciam se incomodar com o frio do lado de fora. De cócoras e arqueada para frente, ela se alimentava de algum animal robusto estirado no chão. Seria um porco? O som agora era outro, como se um líquido espesso atravessasse com dificuldade o longo trajeto por um canudinho. O prazer dela ali não era diferente do dele quando tomava seu achocolatado com leite no desjejum.

Eles não estão em casa

Seu imaturo pomo-de-adão subiu e desceu mais de uma vez. De alguma maneira, a criatura era como ele. Uma pele tão pálida quanto à do garoto, que parecia refletir a luz. Estava faminta e tinha o sangue do animal escorrendo pelos braços e coxas, formando uma pequena poça sob os pés também descalços. Seria uma menina? Se fosse, ele poderia até namorá-la, ainda que o orfanato ditasse o quão pecaminoso era a ideia. Ela parecia bonita, de narizinho delicado, o sorrisinho fino desenhado no rosto e aqueles olhinhos vermelhos rasgados nos lados. O sabor ferroso do sangue tomou conta de seu palato e o garoto percebeu que mordia os próprios lábios, enquanto um calor súbito nascia entre as pernas e subia pelo estômago, devolvendo o calor que ele tinha perdido havia pouco. Rezou, lembrou-se das palavras e pediu perdão ao Senhor pelos pensamentos errados. Algo nele, contudo, dizia que era o contrário. Pensou ser o diabinho sobre o ombro e logo apagou a intenção de si. Os dedos gelados congregavam com o calor debaixo tendo o centro do seu corpo como parlamento.

A junção de sentimentos lhe deu náuseas. Mesmo assim não conseguia se mover. Os olhos vidrados na criatura agora pareciam paralisados pela recompensa. Ela o encarava de volta. Curiosa, limpava a boca da viscosidade rubra que escorria, enquanto admirava o outro com curiosidade semelhante. Como era possível que ela o enxergasse através de uma fechadura? “O espaço não se mede. O que é gigante numa ponta é minúsculo na outra e também ao contrário”, pensou ter ouvido, mas eram apenas seus pensamentos. Ele saiu de seu transe quando ouviu o estrondo. Era o som de outra daquelas portas abrindo e fechando e batendo, esta do lado oposto do pátio. Uma sombra magra e comprida projetou-se sobre o chão até alcançar os pés da criatura. O padre vestia os trajes típicos, com a batina preta destacando-se na escuridão branca tanto quanto o camisão vermelho da outra. O homem trazia um saco na mão que revelava o sangue sob a transparência e gotejava o conteúdo no piso, formando uma poça adversária. Ele balançou a peça no ar e a criatura acompanhou seus movimentos com desejo, a língua vez ou outra percorrendo os lábios sedentos. O saco foi jogado na direção dela, que avançou e devorou toda a carne como se fosse um dos cães gêmeos. Aliás, onde estavam os animais? “Há dois lá fora”, sussurrou a voz nas sombras. Quando ela terminou, ainda sorveu o restante do sangue no plástico até não restar uma gota visível. Parecia satisfeita, sentada nos quartos traseiros, deixando um pouco da nudez escapar do camisão. Quem parecia estar em transe agora era a criatura. Então, o grasnido. O garoto reconheceu.

Era a menina que grasnia, se fosse realmente uma menina. O tempo todo e era ela, quem diria. “Está alimentada, agora vá”, ordenou o padre. “Eu tenho fome”, a voz dela era doce e jovem e se parecia com o de uma menina mesmo. Ele ouvia a discussão sem se mover, ainda protegido pelo grande mármore. Os dois pareciam ter um acordo e alguém o descumpria de alguma maneira que o garoto não conseguia compreender. “Eu quero mais”. “Então vá procurar em outro lugar. Não a quero perturbando minhas crianças”. “Elas não são suas, você sabe”. Mesmo de longe, ele percebeu o padre ajustando o aro dos óculos sobre o rosto e depois de novo, como num tique.

A criatura arrastou um braço para frente e manteve o outro arqueado para trás, os joelhos dobrados e as pernas abertas para os lados, inclinando o corpo na direção do homem como se fosse uma jaguatirica. Quando percebeu, ele havia aberto a porta. Não o notaram. De fantasma da noite o garoto passou a testemunha do que acontecia naquele pátio. O homem avançava sobre a criatura, acertando primeiro um chute no estômago, depois um soco no nariz. O sangue borrifava com vontade. A menina, se é que era uma, mal conseguia se mover prostrada no piso. O padre grunhia impropérios e pecados que ele fingiu não ouvir. Um soco na cabeça, um pontapé na costela e depois um furo no camisão vermelho aumentou para um rasgo, até que ela fosse despida. E quem diria, o homem que admirava e temia, agora descia as calças e ajoelhava-se, mas não para rezar. Existia um tipo de prazer, mas aquele o garoto não conhecia. “Pare, por favor. Meu senhor. Pare”, novamente ignorado.

Ao lado dos dois, a governanta. O que antes ele acreditava ser um porco, era na verdade uma das irmãs. Mesmo na madrugada, a pele da mulher não parecia parda como sempre fora, agora tingida de uma palidez insalubre e veios anilados percorrendo braços e pernas como se fosse uma grande teia. Seria a criatura uma aranha? Não se parecia com uma. Para ele, ainda uma menina. O diabinho em seu ombro voltou a falar qualquer coisa e o garoto correu para ajudá-la, sem hesitar.

A sensação de liberdade e valentia era única, inédita nele. Antes que pudesse alcançar a criatura, contudo, ela se desvencilhou repentinamente do homem, rolou no chão pelo lado oposto e tomou impulso com um pé, escalando o corpo do outro até atingir sua jugular. Mordeu com vontade, enquanto o padre parecia desabar sem forças pelo piso frio, revirando os olhos, deixando os óculos caírem. Aquele líquido viscoso parecia uma pintura no rosto dela, combinava com sua palidez. O inimigo jazia com a língua combalida para fora sob seus pés e ela grasniu mais uma vez pela vitória. “Satisfeita, agora sim”. O garoto finalmente teve coragem de se aproximar. Tocaram um ao outro, na face, no peito, a descoberta acontecia naturalmente. Nua como estava, ela era mesmo uma menina. Tão branca quanto ele, gelada como ninguém mais. “Era você quem eu ouvia todas as noites”. “Sim, eu vim para chamá-lo”. Em um único salto a criatura alcançou o topo do muro, a três metros do chão. Ele teve de se virar com os caixotes empilhados ao lado para escalar até ela e então vislumbrar o mundo que existia para fora e longe do orfanato. “Que lindo”. “Eu não acho”. “Por que o matou?”. “Ele me atacou primeiro. E os adultos são mais saborosos. Não comemos crianças”.

Agora o garoto estava sentado, com as pernas balançando do alto, deixando seu pijama branco sujar-se pela primeira vez; não havia mais pecados. “Ela era uma irmã, ele era um padre. Mas você é como eu”, “Você é um menino”, “E você é uma menina”. “Não sou uma menina, sou algo a mais”. As silhuetas da metrópole ganharam cores sobre as formas quando o primeiro clarão surgiu no horizonte, meio dourado meio acobreado, tornando o céu escuro em azul vivaz. Outros ruídos também despertaram, buzinas e motores, o correr de portas de metal, os sapatos contra os solos, gritos no vazio, alegria e tristeza naquela babel urbana tão nova para o órfão. “Para onde vamos?”, “Para um mundo sem adultos, mas tem de ser antes do amanhecer”. Um lugar sem pecado, prometeu a criatura, agora uma menina segundo ele decidiu. Um lugar onde o diabinho não se equilibrava sobre o ombro, onde sacerdotes não ditariam regras, nem os mais fortes fariam pilhérias, nem os velhos rugiriam. Ele e ela partiriam dali para um cenário seguro, onde trocariam o dia pela noite, imorredouros, vivendo sua felicidade utópica. Era como aquele corredor frio do orfanato, com duas extremidades opostas, uma porta de volta para o quarto, outra para fora, com as janelas assistindo o trajeto em silêncio. O garoto abandonaria a vida e seria uma criança para sempre.



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