Obra que completa a reportagem de Chico Felitti sobre a vida de Ricardo Corrêa, o Fofão da Augusta, finalmente chega para nos dizer mais sobre uma das histórias que mais nos emocionou nos últimos anos
Eu morei na Alameda Itu, entre as ruas Augusta e Haddock Lobo, até os 17 anos. Esse lugar de São Paulo é um daqueles bem privilegiados: central, perto do metrô, da Avenida Paulista, das baladas da Rua Augusta, de grandes restaurantes e de uma escola bem tradicional meio italiana. Durante todo esse tempo, vi algumas grandes figuras marcantes: o homem do carro amarelo, uma mulher em situação de rua conhecida como “Maria” que sofria na mão de pessoas que berravam seu nome, um homem que ouvia os taxistas chamarem de “mendigo dos olhos azuis”... e o Fofão.
Sempre o via com as bochechas enormes e altas, corpo curvado e cabelos amarelos. Minha avó, uma senhora conservadoríssima, me dizia pra não encarar. Não conversar. “Ele bate, viu? Corre atrás e te pega. Nunca fale ou responda nada dele.”, advertia. Um tempo depois, minha amiga inseparável da época, Juliana, foi quem me contou sobre sua lenda: “Disseram pra minha mãe que ele é assim porque apanhou muito. Era uma travesti com bastante silicone na cara. Daí tudo ficou espalhado desse jeito, coitado. Por isso que é ‘Fofão’, né, porque lembra mesmo...”. Com isso tudo, passei a ignorar sua presença. Ele passava por mim, eu às vezes pegava um de seus folhetos, mas mais nada.
A vida seguiu, muitos anos se passaram e, em 2017, na casa da minha sogra, vejo meu namorado compenetrado, com o rosto a quase dois dedos da tela do celular. Perguntei o motivo da atenção e ele disse que “um jornalista muito foda havia entrevistado e descoberto muito da vida do Fofão da Augusta e isso tinha dado um texto incrível”. Ele me mandou o link da reportagem “Fofão da Augusta? Quem me chama assim não me conhece” e eu fiquei embasbacada. Li e enviei para amigos de faculdade. Que mandaram pra outros. Que já haviam recebido de outros colegas. E no final daquele dia de Outubro, minha bolha só sabia falar dele: Ricardo Corrêa da Silva. Que não tinha sido uma travesti, mas que tinha mesmo apanhado muito.
Alguns meses depois, depois de eu entrar para o JUDAO.com.br, convidamos o autor dessa investigação para participar do nosso podcast, o ASTERISCO. Chico Felitti topou, e como havia se casado há 3 dias, levamos para ele um bolinho de bem-casado. Naquele episódio (que você pode ouvir AQUI) ele contou sobre seu processo de escrita e pesquisa, pautas, jornalismo brasileiro e anunciou: um livro contando MAIS sobre Ricardo estava chegando! E 8 meses depois, Ricardo e Vânia: o maquiador, a garota de programa, o silicone e uma história de amor FINALMENTE chegou às livrarias.
Esse livro-reportagem parte da matéria publicada no BuzzFeed Brasil, mas quando ela termina… uma porta ainda maior se abre. Chico envolveu-se muito com a família de Ricardo, os Corrêa, e se empenhou em contar a história sobre a ascensão e queda dele, que havia sido um grande cabeleireiro e maquiador das estrelas, (Tônia Carrero e Ana Maria Braga estavam na lista de clientes assíduas) sócio do salão de beleza Casarão e companheiro de Vagner, atual Vânia, com quem viveu por oito anos.
Chico é um autor que te pega pelas mãos. Com a sensibilidade do mundo, ele fala sobre os últimos dias de Ricardo e seu reencontro – por meio de uma chamada de vídeo – com Vânia, pouquíssimo tempo antes de morrer. Narra sua recém-adquirida proximidade com os Corrêa e a jornada para conhecer mais sobre as esquinas da vida de Vânia, que antes ele só conhecia como Vagner e Babette, mas acabou aprendendo que ela mesma já havia adotado vários nomes. Foi à Paris com sua mãe, a fiel companheira e também escritora Isabel Dias, para conviver com a moça, que detalhou tudinho sobre ser uma garota de programa, as amizades que fez, seu estilo de vida e as alegrias e traumas que deixou pra trás.
Vânia, assim como Ricardo, é uma personagem riquíssima. Cheia de falas e trejeitos específicos, costumes e um amor intenso por sua cachorrinha Gaya, ela se deixou vulnerável e Chico soube traçar um caminho equilibrado entre o respeito e a insistência dentro daquela porta aberta repleta de memórias quase adormecidas.
A parte mais emocionante, pessoalmente, é sobre a última conversa dos dois protagonistas. Em especial, a parte em que Ricardo diz: “A gente tinha gatinhos, você lembra?”, para ela. Descolei meus olhos das páginas e olhei para os meus dois felinos dormindo no cantinho da cama. É um detalhe tão pequeno, mas me fez imaginar os dois também recostados em travesseiros com os animaizinhos na cama. Ou no sofá. Vivendo a vida normalmente, talvez uma tarde de domingo mais preguiçosa. As coisas que faziam deles um casal como qualquer outro, também.
O livro, escrito de uma maneira deliciosa, me fez virar páginas até ver o seu fim em pouco mais de 24 horas. E, ao terminar, me senti conectada com aquilo tudo. Lembrei das poucas vezes em que ouvi a voz baixinha de Ricardo, de um ou dois “obrigado” por levar um folheto. De como ele andava pintado. Como seriam suas maquiagens de antes? O que conversava com Tônia Carrero? Como será que era a tal escova magnífica que sabia fazer? Será que ele me diria pra hidratar mais o cabelo? Teria brincado de falar italiano comigo quando visse meus dois sobrenomes?
Uma obra que é feita de pessoas interessantes, obstáculos de pesquisa e investigação, ética jornalística exemplar e refinada por um olhar incrível. Que bom que Chico Felitti deu nova vida à Ricardo e Vânia. E que sorte a nossa poder conhecer uma história que, se todos seguissem os conselhos da minha avó, jamais teriam escutado.
PS. Eu procurei e encontrei Vânia no Instagram, que me seguiu de volta. E ao terminar de ler, entrei lá para mandar uma mensagem para o Chico. E enquanto conversava com ele, vi uma notificação de Vânia Munhoz: era ela deixando uma curtida em uma foto da minha gata, postada algumas horas antes. Sorri e escrevi para ele: “comecei a seguir a Vânia por aqui e ela dá like nas fotos dos meus gatos!”. E Chico respondeu, com o conhecimento de quem há algum tempo já conhece seus costumes: “ela é curtidoura!”. <3