A gente te explica como ela surgiu, como ela funciona, quais os seus reais problemas e o que está sendo preparado para resolvê-los
Diplomata, filósofo e professor universitário, o carioca Sérgio Paulo Rouanet, do alto de seus 82 anos, tem ouvido recentemente o próprio sobrenome como nunca sequer tinha imaginado que ouviria na vida. Secretário de Cultura do governo do então presidente Fernando Collor de Mello, ele foi o responsável pela Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991) – a famigerada Lei Rouanet.
Sabe do que se trata, né? SABE ou acha que sabe? A grande maioria das pessoas pensa que a Lei é uma coisa, mas não faz sequer ideia de como a coisa funciona – o que, em nenhum momento, significa que ela não seja uma lei que tenha problemas. Isso tem. Mas vamos falar deles um pouco mais pra frente.
Oficialmente, o objetivo da Lei Rouanet “é promover, proteger e valorizar as expressões culturais nacionais por meio de incentivos fiscais”, permitindo “assegurar e conservar o patrimônio histórico e artístico no país por meio do estímulo à difusão da cultura brasileira e da diversidade regional e etnocultural”. Mas e como diabos esta tal desta lei funciona, assim, na prática?
A lei é formada essencialmente sobre um tripé, com três instrumentos de atuação. O primeiro é o Fundo Nacional da Cultura (FNC), que tem verbas vindas diretamente do governo – e que, em sua maioria, auxilia principalmente Prefeituras Municipais e entidades ligadas ao próprio Ministério da Cultura (MinC). Depois, vem o Fundo de Investimento em Cultura e Arte (Ficart), que permitiria comprar cotas de um projeto e ter retorno em cima dos lucros, meio que se tornando seu sócio. Como o Ficart acabou não sendo nunca oficialmente criado, o ministério faz uso do FNC, originalmente voltado para projetos com menor possibilidade de captar recursos, para todos os projetos relacionados.
Existe ainda um modelo mais comum e que é aquele mais largamente utilizado, o Mecenato, que apoia projetos enquadrados nos artigos 18 (artes cênicas, livros, música erudita, exposições de artes plásticas, doações de acervos para bibliotecas, museus, arquivos e cinematecas públicos, preservação do patrimônio) e 26 (games, música popular, entre outros) da lei.
Basicamente, o Mecenato permite que pessoas físicas e jurídicas possam deduzir do Imposto de Renda até 100% do valor investido em projetos culturais (no caso do artigo 26, pode chegar até 80%) — isso respeitando um limite de 6% do imposto devido no caso de pessoas físicas e de 4% para as empresas. Em outras palavras, se uma empresa dever $100 de imposto, ela pode usar até $4 pra apoiar um projeto — e a partir daí você começa a entender porque, na grande maioria dos filmes nacionais, a gente passa uns 2 minutos só vendo logo de empresas. :P
No entanto, pra participar dessa política de incentivos fiscais, os produtores e/ou artistas que estejam buscando apoio para os seus projetos não procuram o governo em busca de dinheiro: eles buscam a Lei Rouanet para registrar e cadastrar suas propostas e terem a liberdade de ir buscar dinheiro NO MERCADO, num processo meio complicado.
Primeiro o projeto passa por um exame de especialistas que avaliam a viabilidade técnica da parada (ou seja: dá pra tirar isso do papel ou não?). Ganhou aprovação, ganhou também um número do Pronac (Programa Nacional de Apoio à Cultura). Mas ainda precisa passar pela aprovação das unidades técnicas do Ministério e do CNIC (Comissão Nacional de Incentivo à Cultura).
Conseguiu? Ufa. Agora o seu projeto está pronto para iniciar a captação de recursos. Ou seja: é hora de cair na estrada e visitar as empresas para convencê-las de que o seu projeto é bacana e pode dar a elas suficiente visibilidade. Pastinha debaixo do braço, é hora de ser vendedor. De dizer “meu projeto tem aprovação da Lei Rouanet e, se você investir nele, além de ser mostrado para o mundo, ainda vai poder descontar o valor do imposto de renda”. São as próprias empresas que decidem que projeto vale a pena ou não, seguindo critérios de viabilidade comercial.
LUCRO, basicamente.
A Lei Rouanet surgiu em um momento complicado do Brasil para a cultura, é preciso entender – na época, o governo Collor tinha revogado a Lei Sarney, que garantia incentivo à produção cultural, e acabado não apenas com o Ministério da Cultura mas também fechado as portas de órgãos como a Embrafilme (estatal brasileira produtora e distribuidora de filmes). A ideia foi colocar uma opção diferente nas mãos do próprio mercado, fazendo com que o Governo abra mão de parte dos impostos para que empresas privadas se sintam tentadas a patrocinar eventos culturais. Além disso, pelo menos em teoria, esta seria uma forma de valorizar a marca das empresas perante o público, já que o logo da companhia estaria no pôster, no comercial de TV, no trailer, nos créditos iniciais.
No entanto, ainda assim, existe quem se posicione radicalmente contra este modelo – como é o caso do próprio Juca Ferreira, atual Ministro da Cultura. “A Lei Rouanet é uma parceria público-privada em que o dinheiro é público e a decisão é privada”, diz ele, em entrevista ao jornal O Globo. Embora afirme saber que o mecanismo foi fundamental para a injeção de verbas na cultura ao longo dos últimos anos, ele lembra que as empresas acabam fazendo muito mais uso do tal do Mecenato do que do Ficart – a diferença entre ambas foi de R$ 1,13 bilhão contra R$ 51 milhões em 2015.
“A Lei Rouanet matou o Ficart no nascimento, já que ninguém quer correr o risco de aplicar dinheiro e ter prejuízo”, explica. Já falando com a Carta Capital, ele é ainda mais incisivo. “A lei é perversa. Só se aplica a quem tem condições de dar retorno de imagem para as empresas que se associam”, diz. “Não tenho nenhum problema com as empresas, tenho problema com a lei. Ela é injusta, provoca concentração, discrimina, não é capaz de se realizar em todo território brasileiro”.
O ministro diz entender claramente que o o lucro faz parte da atividade cultural — e que sabe bem que, no capitalismo, tudo está regido pela lei da mercadoria, inclusive a cultura — mas diz que a Lei Rouanet fracassou no objetivo de tentar desenvolver um capitalismo cultural, uma economia da cultura. “Privilegiou uma camada de intermediários, com foco na produção de projetos e em sua aprovação nos departamentos de marketing das empresas”. Juca lembra ainda que, apenas em 2014, os produtores de Rio de Janeiro e São Paulo captaram mais do que o Norte e o Nordeste juntos desde 1991, quando foi criada a Lei Rouanet. “No Norte, os incentivos não chegam a 1% ao ano; no Nordeste, nem 5%. Hoje tem produtor em todo o Brasil, o cinema cearense, pernambucano e brasiliense estão bombando. A concentração é tão burra quanto a tentativa de um igualitarismo abstrato”.
O Tribunal de Contas da União (TCU) também parece concordar com o Ministro, de um jeito ou de outro. Em fevereiro, o órgão emitiu uma determinação dizendo que eventos culturais com “potencial lucrativo ou que possam atrair investimento privado” serão proibidos de receber incentivos fiscais através da Lei Rouanet. A decisão veio depois das análises à regularidade da captação de recursos feita pelo Rock in Rio, que em 2011 captou por volta de R$ 6 milhões de empresas patrocinadoras e que, depois, puderam abater parte deste valor do seu IR. Ainda cabe, no entanto, recurso da decisão e não existe previsão de quando a proibição entra em vigor.
“Não consigo vislumbrar interesse público a justificar a renúncia de R$ 2 milhões de receita do Imposto de Renda em benefício da realização de um projeto com altíssimo potencial lucrativo, como o Rock in Rio”, diz o relator do processo, ministro Augusto Sherman, para a Folha de S.Paulo.
Os técnicos que analisaram a questão e elaboraram seu parecer entenderam que, “apesar de serem moralmente inaceitáveis, os incentivos fiscais não são ilegais”. Mas gente: alguém tinha dúvida de que um evento com o tamanho do Rock in Rio conseguiria facilmente apoio do mundo corporativo, sem ter que entrar com projeto via Mecenato? O mesmo vale para megaproduções, como os musicais que são adaptações de bem-sucedidas peças da Broadway. “A decisão do TCU manifesta um incômodo com uma das distorções da Lei Rouanet. O financiamento pela legislação acaba capitalizado por quem menos precisa e deixa de patrocinar diversas áreas culturais importantes para o Brasil”, concorda o ministro. Qual seria, então, a solução? Para Juca Ferreira, sem sombra de dúvida alguma é o Procultura, projeto já aprovado na Câmara e que neste momento tramita no Senado.
Para o UOL, ele diz que o Procultura vem sendo discutido há uma década e que teria passado pela avaliação direta de mais de “100 mil pessoas” até então. “A gente assimilou tudo de interessante”. Essencialmente, o Procultura mantém os três mecanismos atuais, mas acaba de uma vez com a renúncia de 100% e ainda passa a exigir certa contrapartida do lado do patrocinador, com o objetivo de munir o FNC – que seria dividido por áreas específicas da cultura, cada uma devidamente gerenciada por um conselho de representantes do setor.
“A renúncia fiscal não vai mais ser o mecanismo principal”, explica. “E o projeto cria várias modalidades de colaboração, para que não seja somente o dinheiro gerado pela renúncia. Tem até co-produção. (…) E o Procultura não tem nenhum preconceito contra o grande artista que move uma indústria cultural, nem contra o médio, nem contra o pequeno. É uma lei muito generosa e um passo adiante”.