Entretenimento de segunda classe? Acho que não. | JUDAO.com.br

Relegar o que é pop e/ou mainstream a um papel secundário é antes de tudo ter desprezo pela nobre atividade de sorrir

Oi, Inácio, tudo bem? É, você mesmo, Inácio Araújo, crítico de cinema conhecido especialmente pelo trabalho no jornal Folha de S.Paulo. Como vai? Espero que muito bem. Sabia que sempre fui fã do seu trabalho? Verdade. Quando trabalhava na comunicação do canal de clássicos TCM, sempre me deparava com seus textos e, confesso, aprendi muito com eles. Era genuinamente um prazer lê-los.

Tá bom, não vou mentir. Este é um site de cultura pop. E pelo título desta matéria, claro, você – me permita esta ousadia, a de chamá-lo de maneira menos formal como seria um “senhor” – já imagina o que vem pela frente. Não vou ficar de firulas. O que eu disse logo acima é a mais pura verdade. Como também é verdade que estou aqui para fazer uma crítica direta e sem rodeios ao texto que o senhor, ops, perdão, você, escreveu para o portal UOL. Trata-de um artigo que atende pelo título de Super-heróis ajudam a fazer do cinema uma diversão de segunda classe. Pô, Inácio, fala aí, vai. Você sabe que pegou pesado.

Na verdade, nem é a primeira vez que me vejo neste papel, sabia? É, de topar com uma coluna sua desancando um típico produto do universo pop e me colocar do outro lado. Quando cuidava do meu finado site, o popular (?) A ARCA, tive que editar a elegia* pouco elogiosa que um colaborador fez à sua crítica do primeiríssimo Senhor dos Anéis. Lembra-se disso? É, imagino que não. Mas como A ARCA está novamente no ar, como uma espécie de “museu virtual”, é possível ler a danada da matéria clickando aqui.

Senhor dos Aneis

Olha, de coração, eu entendo parte de sua frustração, verdade. Juntando os lançamentos da Marvel, da Warner / DC, da Fox e da Sony, teremos nada menos do que 33 filmes de super-heróis a serem lançados até 2020. É coisa pra chuchu. Sua preocupação é válida. Parece uma loucura, parece que Hollywood encontrou uma muleta. Eu, como leitor dedicado e apaixonado de gibis, estou empolgado até dizer chega mas, admito, o cinéfilo dentro de mim se preocupa um pouco. Produzidos assim, aos montes, em escala industrial, será que estes filmes todos vão ter alguma garantia de qualidade? Será que parte deles não serão escorregadelas? Dentre tantos títulos, será que não temos aí reservados, talvez, mais um Elektra ou Mulher-Gato para nos trazer amargas lembranças? É, isso é uma hipótese real, não dá pra gente garantir nada. É o tipo de coisa que me arrepia.

Também entendo que você, que sempre afirmou gostar muito dos dois primeiros filmes do Homem-Aranha do Sam Raimi, tenha pegado uma birra tremenda do terceiro (que sofreu, como bem sabemos, uma interferência quase criminosa dos produtores) e, logo depois, dos dois Espetacular do Marc Webb – que estão longe de ser uma unanimidade até mesmo entre os fãs do personagem original das HQs.

Você diz que se incomoda.

Mas tem algo que me incomoda ainda mais, Inácio. Uma característica que está presente em seu texto anterior, aquele do Senhor dos Anéis, sabe? E também pode ser fortemente sentida no seu texto sobre os filmes de super-heróis. É o que eu costumo chamar de elitização do entretenimento. Inácio, isso me incomoda mesmo. Aliás, não apenas me incomoda. Isso me irrita. Profundamente.

Homem-Aranha

É esta mania de querer tratar tudo que é pop, tudo que é mainstream, tudo que é blockbuster, como algo menor, como uma forma de arte inferior, abaixo das “respeitabilíssimas” formas de arte mais eruditas. “O Aranha ilustra bem, no entanto, a capacidade da indústria de cinema atual de vulgarizar tudo em que toca”, diz você em seu texto. Ou seja, tudo que é produzido pela “indústria” hollywoodiana é, por definição, uma porcaria descartável. É cinema banal. Ou, como você diz mais pra frente, “os super-heróis ajudam a fazer do cinema uma diversão de segunda classe: o lugar onde a gente vai por falta do que fazer, depois das compras, para se encher de pipoca ou passar mensagens pelo celular”.

Inácio, meu querido. Você se lembra do cinema noir da década de 1940? A gente já falou sobre esta estética aqui no JUDÃO, inclusive. Filmes policiais em preto e branco, com aquele cinismo típico de seus protagonistas com ares de anti-herói, estética inspirada no expressionismo alemão e tramas surgidas das páginas dos romances policiais escritos por caras como Raymond Chandler e Dashiel Hammett (também escritor de quadrinhos, lembremos). Então. Estes filmes noir não eram exatamente um sucesso de crítica em sua época, certo? Eles eram o mainstream daqueles tempos, bebendo na fonte do que se considerou, durante muito tempo, como literatura barata, de segunda categoria. Chandler e Hammett não eram nada perante os grandes autores clássicos. Hum. Sei.

Este tipo de discurso coloca imediatamente a música clássica de Sebastian, Wolfgang e do velho Ludwig como sendo a única música a ser realmente considerada como “boa música”. A música pop de nomes como Madonna e Michael Jackson, é claro, é diversão de segunda classe. O rock, então, pfffff, nem se fala. Música de incultos. Engraçado, no entanto, que há quem considere o blues como sendo o pai de todos os gêneros musicais que surgiriam depois dele, desprezando todo o resto. Há os chamados xiitas do rock clássico, que não se dão nem ao trabalho de ouvir qualquer coisa nova lançada depois dos anos 1990. E a tal da ditadura indie paulistana, que considera qualquer dissidência roqueira como o hardcore ou o heavy metal como sendo “rock para adolescentes sem cérebro” ou “diversão para tiozões que não amadureceram o suficiente para ouvir boa música de verdade”.

Mas e aí? Quem diabos está certo nesta história? Não se estresse, nem se preocupe, eu lhe dou a resposta. Ninguém.

Demônio das 11 HorasO mesmo vale para o cinema, meu bom Inácio. Cinema bom não é apenas o cerebral cinema experimental europeu ou iraniano. Bons filmes de verdade não estão apenas na programação das salas de cinema de arte ou da Mostra Internacional de São Paulo. Nada disso. Isso é bom cinema, claro que é. Godard, Kiarostami, Bergman, Antonioni. Todos estes são gênios. Mas também não o são Spielberg, Tarantino, Kubrick? Pois é, o velho Stanley não era brilhante, um louco incompreendido e experimental – e, ainda assim, bastante pop?

Se colocar num pedestal cultural, acima dos pobres mortais que não entendem O Demônio das Onze Horas, tratando seu nobre cinema-arte como “primeira classe” enquanto o cinema-pipoca é tarimbado e carimbado como “diversão de segunda classe”, amigo, isso tem nome. É preconceito. Sei que a palavra é pesada, carregada de significado, ainda mais na polarizada batalha entre reaças e PTralhas que se trava hoje nas redes sociais. Mas é sim um conceito pré-estabelecido. Um pré-conceito, portanto. E é o tipo de coisa que não lhe cabe, Inácio, vá. Você é mais inteligente do que isso.

Este ano, a Marvel lançou dois exemplares emblemáticos do que eu, de verdade, espero como referência para a leva de três dezenas de películas que chegam por aí nos próximos anos. O primeiro deles é Guardiões da Galáxia. É um filme leve, engraçado, gostoso, com sabor de Sessão da Tarde. Os personagens são carismáticos. E a trama sabe rir de si mesma, não se perde na auto-indulgência épica de uma tonelada de efeitos especiais. Tem seus ares de Guerra nas Estrelas e De Volta Para o Futuro – destes você gosta, aliás? Ou, para você, são “diversão de segunda classe”? Isso realmente não ficou claro pra mim.

Capitão América 2

O outro filme é Capitão América 2: O Soldado Invernal. Você já viu? Pois deveria. É filme de super-herói com toques de filme de espionagem. Parece aqueles filmes de espião com ares de conspiração governamental que a gente via bastante na década de 1970, lembra? O clima de paranoia, de “não confie em ninguém”, de Big Brother, de “o governo está por trás de tudo e sempre um passo à nossa frente”. É fantasia. Mas muito real nos dias de hoje, não é? Para quem reclamava de “ausência de tensão entre fantástico e mundo real”, me parece uma boa pedida.

E o que é melhor: é baseado em um arco de histórias lançado depois dos anos 2000. Ou seja: derruba completamente por terra o seu argumento de que as HQs atuais, agora denominando-se “graphic novels”, teriam se tornado nada além de “pedantes”. Mas tudo bem, a gente te perdoa por esta bobagem mundana, esta fixação por dizer que gibis são uma subliteratura (Neil Gaiman e Alan Moore mandaram lembranças). A gente perdoou até o Paulo Francis por esta.

Ambos os filmes, os galhofeiros Guardiões e o nobre Capitão, são pop, mainstream, blockbusters. E também são ótimos exemplares de cinema. É cinema de entretenimento? Mas claro que é. Mas questiono aqui: e cinema não é sempre entretenimento? Quem diabos criou esta distinção entre arte e entretenimento? Por que ambas não podem caminhar juntas? Por que aquilo que é divertido, que está no grande circuito comercial, não pode ser considerado também uma obra de arte a seu modo?

Deixa tamanha soberba de lado, Inácio. Aprenda a se divertir. Não existe idade para isso. Ninguém é inteligente demais para curtir um bom cinema pipoca, entende o que quero dizer? Sabe aquelas tais filas de domingo? Compre seu bilhete. Entre numa delas. E se deixe contagiar pelos sorrisos. Não precisa comprar nada no shopping. E nem comer pipoca, caso não goste. Mas só fazemos questão que o senhor – putz, lá vou de novo, perdão, é “você” – desligue o seu celular. Disso fazemos questão.

Sua vida com certeza vai ficar mais leve.

Vai por mim.

Grande abraço.