Em um papo online com a gente, o vocalista e guitarrista Keith Fay falou sobre música, referências, Brasil e sanduíche de cebola com tomate
Existem alguns países no mundo que ainda fazem questão de preservar as memórias de sua cultura. Pois quando a história e a mitologia se misturam num único caldo, uau, isso pode inclusive acabar moldando um verdadeiro estilo musical particular do local. Esse é o caso da República da Irlanda, um país que apesar de pequeno não se resume somente ao U2 quando o assunto é rock. Porque, em se tratando da mistura entre heavy metal e o resgate da música tradicional irlandesa, isso já passava pela cabeça de um menino de apenas 12 anos que amava ambos.
O garoto, no caso, era Keith Fay, vocalista e guitarrista da banda Cruachan, que divide com o JUDÃO.com.br boas memórias de quando resolveu fundar a banda. Infelizmente, seu pai veio a falecer recentemente — e com isso algumas boas memórias vieram à tona. Keith comentou pela primeira vez numa entrevista, aliás, que uma memória que voltou a sua cabeça da época em que decidiu fundar a banda foi quando estava sentado à mesa de jantar com o pai, comendo um sanduíche de cebola com tomate. O sujeito era músico na época e, quando ouviu a ideia maluca que o filho tinha, apoiou e falou que ele devia fazer isso, mesmo ainda sabendo que poderia ser um caminho difícil a ser trilhado num país que não estava exatamente aberto à experimentações desse nível com sua música folclórica tradicional.
O Cruachan ficou mais tarde conhecido por ser uma das bandas precursoras do subgênero de heavy metal chamado de folk metal. Apesar do Skyclad da Inglaterra também ter seu crédito, Keith comenta que quando conversa isso com seus amigos da banda inglesa, eles dão risada a respeito das histórias sobre quem inventou o gênero. Porém, Keith aproveita para dar aquela cutucada amigável e lembra que, no seu primeiro álbum, o Skyclad só tinha UMA música com notas de música tradicional folclórica.
De qualquer maneira, Keith levou o conselho do pai a sério ainda muito jovem e, com uma grande influência de Tolkien, resolveu batizar a banda com o nome de Minas Tirith. Não demorou muito para as influências da mitologia celta tomarem forma em suas composições e ele resolveu então mudar o nome da banda para Cruachan, outro nome para o famoso sítio arqueológico irlandês Rathcroghan.
“Meu pai foi o primeiro a sugerir que eu tocasse flautas, tin whistles e outros instrumentos que caracterizavam a música tradicional irlandesa, se eu quisesse realmente levar isso a sério”, lembra ele, rindo tanto das origens da banda em meados de 1991 quanto do sabor daquele sanduíche de cebola e tomate.
Apesar de ainda manter algumas referências ao universo fantástico de Tolkien como nas canções Shelob e Ungoliant , ambas do álbum The Morrigan’s Call (2006), o Cruachan acabou desenvolvendo mais canções com influências da mitologia celta mas não se limitando somente a isso. “Tem também coisas políticas e históricas no nosso trabalho. O fatídico episódio da grande fome que afetou a Irlanda entre os anos de 1845 a 1849 também é narrado na música The Great Hunger, por exemplo”, comenta Keith.
O Cruachan tem atualmente oito álbuns de estúdio. Apesar de terem feito muitas turnês, em especial festivais, não conseguiram gravar e lançar um disco ao vivo até hoje, aquele Santo Graal de toda banda de metal. “Infelizmente, para uma banda do nosso porte é muito difícil arcar com os custos de uma turnê, ainda mais para lugares distantes como o Brasil”, comenta Keith. “Nós não somos como o Amon Amarth ou sei lá, o Metallica, e além disso não vivemos de música. Todos da banda têm emprego fixo em alguma outra área e podemos sair em turnê somente quando todos podem tirar férias juntos”, lamenta Keith.
Porém, ele se recorda com grande carinho sobre quando conseguiram vir para a América do Sul, em 2011, para um show em São Paulo, dois na Argentina e um no Chile. “Depois de ver tantos comentários no nosso Facebook de gente sempre falando ‘venha para o Brasil, venha para a Argentina, venha para o Chile’, nós finalmente conseguimos ir”, diz. “Os shows do Brasil e Argentina foram fantásticos, mas o do Chile não tinha quase ninguém, o que acabou sendo engraçado pois estávamos lá no Facebook falando ‘estamos aqui em Santiago’ e quase ninguém apareceu. Em São Paulo foi muito especial, apesar de termos tocado num local relativamente pequeno (Nota do Editor: o Blackmore Rock Bar), o lugar estava cheio e depois lembro de nos encontrarmos com alguns fãs e amigos e depois amigos dos amigos dos amigos, quando de repente tinha uma galera fora do bar tomando cerveja com a gente”, lembra Keith saudoso com um sorriso no rosto. Claro que ele disse que espera retornar ao Brasil tão logo seja possível!
A gente perguntou também com sua parceria com os mineiros do Tuatha de Danann e sua amizade de longa data com o vocalista Bruno Maia. “Acho que o mais engraçado dessa história toda é que lá atrás, quando nem existia Facebook direito, eu e o Bruno trocava e-mails e antes disso acontecer as pessoas me falavam de uma banda no Brasil que fazia música com influência de música celta irlandesa. Pensei, isso é impossível!”, explica. “Acabamos nos conhecendo de maneira inusitada aqui em Dublin quando o Bruno estava na cidade e nunca mais perdemos contato”.
Ele lembra que os brasileiros estão trabalhando num novo álbum tributo à tradicional música irlandesa chamado In Nomine Éireann (e que está com um financiamento coletivo aberto) e o músico foi convidado para cantar em uma música. “Acho que vai ficar bem legal, pois é uma dessas canções que casa perfeitamente com uma noite de sábado no pub em Dublin”, comentou Keith com empolgação a respeito desse projeto, mas sem dar mais detalhes para não estragar a surpresa do disco.
O Cruachan nunca realmente conseguiu emplacar no mainstream irlandês pois a cena de heavy metal nunca foi tão forte por lá. Porém, a banda virou notícia de uma maneira bem desagradável em alguns dos jornais do país quando um jogo de videogame chamado Kill the Faggots (POISÉ) iria ter a participação de uma música da banda. Keith se lembra com tristeza desse episódio.
“Era meu sonho ter uma música minha em um jogo de videogame, já que sou um grande fã de jogos eletrônicos. Quando apareceu essa oportunidade, os caras que estavam desenvolvendo esse jogo me ligaram com uma proposta inteiramente diferente do que era pra ser, outro nome”, diz. “Pesquisei a respeito da empresa que inclusive contava com mais alguns jogos interessantes na plataforma Steam e tudo me parecia bem legal. Eu sou um dos caras que mais apoia o movimento LGBTQIA+ e inclusive meu irmão mais novo é gay e eu não tenho problema nenhum em revelar isso. Num certo dia, vejo meu Facebook e Twitter bombando com mensagens de protesto contra mim e quando fui ver a proposta do jogo foi alterada completamente sem o meu consentimento. Tive que vir a público para esclarecer o mal-entendido e finalmente desvincular meu nome desse jogo e dessa empresa”.
Ele afirma que isso meio que arruinou sua vontade de participar em um jogo de videogame. “Mas, ainda assim, tenho alguns projetos em mente que quando houver tempo quero tirar do papel para colocar em prática e curar esse episódio infeliz”, comenta Keith que, entre trabalho e família, nos tempos livres também grava conteúdo gamer para o seu canal do YouTube.
Dentre outras paradas de cultura pop, Keith já teve membros da sua banda, incluindo seu irmão mais velho, participando também como figurantes no seriado blockbuster Vikings, do History Channel. “Infelizmente não consegui participar por conta do trabalho, mas era engraçado ver meu irmão e o guitarrista da minha banda num episódio ou outro contracenando com o Ragnar Lothbrok (interpretado pelo ator australiano Travis Fimmel)”.
Admitindo ser uma pergunta difícil, Keith tentou eleger os principais álbuns do Cruachan para as pessoas conhecerem melhor a música da banda. “The Middle Kingdom (2000) é um bom disco para se começar, porque não é muito pesado e contém quase todas as nossas influências”.
Ele diz que muitos fãs gostam do primeiro disco também, Tuatha na Gael, de 1995. “Mas sei lá... eu acho que o velho Keith hoje vê tantas falhas naquele disco que eu não sei se recomendaria, mas vale a menção. O meu favorito e que realmente recomendo é o Nine Years of Blood (2018) porque, além de ser pesado, ele contém muita influência de música clássica, que eu também adoro!”, opina.
E pra quem acha que o sanduíche de cebola e tomate tirou o apetite de Keith e do Cruachan, se engana. Apesar do extenso período de lockdown que a Irlanda ainda enfrenta por conta da pandemia do Covid-19, eles planejam retornar ao estúdio em breve para dar sequência a um esperado novo disco!
Slán abhaile!