Afinal, eles não eram apenas uma máquina de fazer sucessos. Mas também uma máquina de fazer dinheiro.
Existem inúmeros livros sobre os Beatles. Centenas, milhares de obras já analisaram a carreira da banda e de seus integrantes, partindo dos mais variados pontos e chegando às mais diversas conclusões.
No entanto, nenhum é como A Batalha Pela Alma dos Beatles (Your Never Give Me Your Money: The Beatles After the Breakup, no título original), escrito pelo jornalista inglês Peter Doggett e publicado no Brasil pela editora Nossa Cultura.
O autor conta, através de uma pesquisa extensa e com grande riqueza de detalhes, a colossal disputa jurídica iniciada após o anúncio do fim do grupo e que envolveu John Lennon, Paul McCartney, George Harrison, Ringo Starr e praticamente qualquer pessoa que tenha cruzado o caminho do quarteto.
Baseado em inúmeras entrevistas com os quatro e com dezenas de pessoas que tiveram relacionamento com a banda e seus músicos (assistentes, familiares, roadies, jornalistas, amigos, ...), A Batalha Pela Alma dos Beatles é um livro notável ao lançar inúmeros focos de luz sobre os bastidores de um conflito épico e quase desconhecido do público em geral.
Traçando perfis profundos de Lennon, McCartney, Harrison e Starr, além de Yoko Ono, Linda McCartney, Brian Epstein (primeiro empresário), Allen Klein (substituto de Epstein e segundo empresário do grupo), Lee e John Eastman (respectivamente sogro e cunhado de Paul e também responsáveis por seus negócios) e os funcionários mais próximos da banda, Doggett revela como os Beatles foram se dissolvendo lentamente desde a morte de Epstein em 1967, passando por longos confrontos jurídicos durante toda a década de 1970 e 1980.
Este processo resultou em rusgas e diferenças profundas e praticamente intransponíveis entre John, Paul, George e Ringo, além de uma contenda aparentemente infinita entre os clãs Lennon e McCartney.
A leitura proporciona um mergulho profundo na mecânica interna dos Beatles, esmiuçando não só como funcionava a banda legalmente, mas também como eram as relações entre seus integrantes.
A forma como a Apple Records, empresa criada pelo quarteto e que tinha como objetivo ser o início de uma nova forma de fazer negócios, se metamorfoseou ao longo das décadas é impressionante, indo de ícone da contracultura à gigante do capitalismo.
Sem qualquer relação com a Apple do Steve Jobs, a Apple Records é um selo musical fundado pelos Beatles em 1968 para reunir os seus empreendimentos criativos, tanto como grupo quanto como artistas-solo – além de cuidar das carreiras de músicos como James Taylor e Badfinger. Durante décadas, tiveram um acordo pouco harmonioso de distribuição com a EMI.
A Apple Records é uma empresa do conglomerado Apple Corps, criado para cuidar dos ativos financeiros da banda. “Nosso contador virou para nós um dia e disse: ‘temos esta quantidade de dinheiro. Vocês querem dar pro governo ou ficar com ele?'”, contou John Lennon no The Tonight Show. “Então decidimos bancar um pouco os homens de negócios porque tínhamos que cuidar das nossas coisas. Então temos esta coisa chamada ‘Apple’ que vai ser gravações, filmes e eletrônicos – amarrando tudo”.
Salta aos olhos a inocência que envolveu os negócios dos Beatles ao longo de sua carreira. A época era outra, mas a forma quase amadora com que a banda conduziu suas finanças e assinou contratos que depois se transformaram em enormes dores de cabeça, impressiona. A chegada do controverso Allen Klein ao universo Beatle, substituindo o falecido Brian Epstein, apenas realçou ainda mais os problemas administrativos do grupo.
Notório por sua fama de mau caráter, Klein obteve o apoio quase incondicional de John, George e Ringo, e, simultaneamente, a antipatia imediata de Paul, razão pela qual as disputas entre os músicos acabaram indo parar nos tribunais.
Outro ponto que merece destaque e surpreende o leitor é o quão próximo o quarteto esteve de se reunir em diversas ocasiões até a morte de Lennon, em 8 de dezembro de 1980. Encontros não divulgados, intenções mútuas de aproximação, parcerias não finalizadas: o que não faltaram foram contatos pessoais e criativos entre os quatro músicos durante toda a década de 1970, principalmente entre Paul e John, deixando a banda a um passo de concretizar o sonho de milhões de fãs em todo o planeta.
Extremamente bem escrito e riquíssimo em informações, A Batalha Pela Alma dos Beatles é um livro sensacional. Não apenas uma obra indicada para fãs dos Beatles, mas, sobretudo, uma aula esclarecedora sobre como funciona a máquina administrativa e financeira por trás de uma grande banda, movida a milhares de contratos e zilhões de advogados.
O sonho acabou em 1970, mas aqui ele mostra a sua verdadeira face, nem sempre agradável, porém sempre surpreendente.