Um véu pode inspirar nossos instintos mais primitivos
Nascemos, crescemos, vivemos, convivemos, nos reproduzimos, criamos nossa prole e envelhecemos dentro de um molde social que já existia antes da gente pisar sobre a Terra. Tantas ideias e sensações, que julgamos originais ao longo da vida, na verdade nos foram contadas, estimuladas, ditadas com o passar do tempo. Não falo de tudo, mas de quase tudo.
A gente olha a timelaje, seja ela qual for, e quer fazer parte. Como estratégia, a maioria prega ser diferente, apenas para integrar aquele grupo de iguais, não importa que ali, seja onde for, uns sejam mais iguais que outros.
Quando percebemos isso, nos sentimos estrangeiros dentro da nossa própria realidade. No entanto, embora muita gente escolha soterrar essa consciência, o importante é sempre saber, né?
De vez em quando acontece de alguém (a gente mesmo, em momentos pontuais da vida) hackear essa condição de vira-lata, de um de nós não querer mais entrar na mesma turma que todo mundo quer chamar de sua. Daí, nos sentimos, em mais de um sentido, mais vivos.
Essa é a história contada na produção argentina Habi, a Estrangeira (no original, Habi, la Extranjera).
Caminhando pela cidade, naquela vida de sempre, no seu trabalho de sempre, ouvindo as perguntas de sempre (“já arrumou um namorado?”), na cidade de sempre, Analía, que depois assume o nome de Habi, descobre um novo mundo dando um passo pro lado em relação à sua rotina.
Em uma tacada só, ela sai da casa onde morava com a mãe, cria uma outra “família”, muda de região na mesma metrópole, de nome, de emprego e abraça uma religião controversa, no olhar de muitos, jecas que somos: o islamismo.
De véu, daquelas ironias que fazem a vida ser mais vida, ela se descobre mulher. Saltando do mundo que habitava, ela se descobre.
É um filme de mulherzona, um chacoalhão que poucos homens se permitem, mas que as mulheres conseguem encarar. Opa, véio, se você está aqui lendo o JUDÃO, é porque caiu pra fora da caixa, e pode ter certeza que sua mãe, que foi criada numa caixa ainda menor que a sua, deu um jeito de te ajudar a sair dessa lenga lenga que gostariam que fosse sua vida, atrás do próximo sucesso, d@ próxim@ gostos@, da próxima viagem ou restaurante sem graça pra postar no instagram.
Obra prima da diretora María Florencia Alvarez, com atuação propositalmente contida e selvagem de Martina Juncadella e participação fundamental da brasileira Maria Luisa Mendonça, Habi lembra a gente de pegar a peteca que caiu no chão e inventar outra mágica pro nosso mundo seguir girando.
Fora que a América do Sul é cheia dessas esquinas mágicas, onde a mistureba que forjou a nosotros fica tão latente quanto irresistível. Eita rolê bom.
(O filme é de 2013, eu vi na HBO, não achei no Netflix, mas tem inteiro no Youtube. Procrastinação existencial de primeira, aconselho. ;)