A metáfora da luta de classes em uma sci-fi muito acima da média (e atrasada pra cacete!)
De quantos filmes que retratam futuros distópicos pré ou pós-apocalipse você consegue se lembrar em um intervalo de um minuto? Eu consigo pensar em pelo menos uns três, nivelando por baixo. O tema não é novidade nos cinemas – e hoje sofre um desgaste e raramente rende produções significativas. Os últimos de que me lembro, por sinal, são sofríveis (né, Neill Blomkamp?).
Mas como toda regra tem sua exceção, vez por outra aparece um Filhos da Esperança, uma fita disposta a trazer um novo respiro, um pouco de criatividade – e também reflexão, que não faz mal a ninguém. Vamos lá, que tipo de discussão você espera de um 2012 ou um O Dia Depois de Amanhã, por exemplo, além da ideia de que Roland Emmerich precisa se aposentar com urgência? :D
Expresso do Amanhã (Snowpiercer, 2013), que chega aos cinemas brasileiros com inexplicáveis DOIS ANOS de atraso – por mais que tivesse sido anunciado há muito mais tempo pela PlayArte – é uma destas exceções à regra.
Esta sci-fi dirigida pelo mesmo Bong Joon-Ho que há alguns anos subverteu as regras dos filmes de monstros com o maravilhoso O Hospedeiro (aqui em seu primeiro trabalho em língua inglesa), embora previsível em um ou outro aspecto, é um achado em técnica e em concepção.
É uma mistura de gêneros – há vários elementos cômicos e dramáticos em meio às tensas cenas de ação. É também uma mistura de estilos – há muito do cinema oriental na forma com que as sequências são coreografadas, e um pouco do pessimismo característico do cinema europeu na forma com que a história é contada, além da câmera vertiginosa e do ritmo made in USA.
É também, e principalmente, um trabalho que se propõe, através de uma abordagem bastante original, criativa e universal (por que não?), a questionar o comportamento social enquanto impacto ambiental e a transformação gradativa do homem em animal quando submetido a uma situação-limite. Isto tudo sem deixar de divertir.
O roteiro, co-escrito pelo próprio Bong Joon-Ho e adaptado de uma bizarrísima HQ francesa chamada O Perfura Neve (já lançada no Brasil), perde pouquíssimo tempo para nos situar: em 2014, uma substância desenvolvida em laboratório com o objetivo de estancar os avanços do Aquecimento Global é lançada na atmosfera e, com seu efeito potencializado e sem controle, termina por congelar todo o planeta, causando a extinção de toda e qualquer forma de vida. Os pouquíssimos sobreviventes na face da Terra são forçados a permanecer confinados a bordo do Snowpiercer, um supertrem em constante movimento.
Não se trata de um trem qualquer: é um gigantesco, potente o suficiente para ultrapassar qualquer bloqueio de gelo em seu caminho (daí seu nome, o “Perfura Neve”) e resistente a ponto de proteger qualquer ser humano a bordo (nesta nova Era do Gelo, alguns minutos exposto à superfície bastam para matar qualquer um), que circula em uma linha férrea que liga todos os continentes e nunca para em nenhuma estação – uma volta completa ao redor do mundo dura exatamente 365 dias.
Seu motor, que segundo a lenda é absolutamente inquebrável, é resguardado pelo seu criador, um empresário recluso e megalomaníaco. O Snowpiercer, desenvolvido para ser um ecossistema independente, com vagões específicos para a produção de alimentos, rotina escolar, fábricas, restaurantes, criação de animais e afins, torna-se então o único ambiente em toda a Terra onde a vida é possível. Qualquer pequena falha em seus mecanismos significa a extinção total da raça humana.
Ao melhor estilo A Revolução dos Bichos, um ambiente destes só pode fazer surgir uma segregação social que se assemelha e muito à própria sociedade como a conhecemos. A primeira classe é composta dos ricos e poderosos, alocados nos primeiros vagões do trem, onde desfrutam de todas as regalias possíveis. A segunda classe, composta de algumas centenas de pobres submissos, é relegada às condições subhumanas dos últimos vagões, onde não se têm direito a banhos, dorme-se em camas improvisadas com quaisquer materiais ao alcance das mãos, o único alimento servido rigorosamente uma vez ao dia é uma barra de proteínas gelatinosa e vive-se em constante vigilância dos guardas de Wilford (Ed Harris).
Wilford, no caso, é o tal empresário que nunca aparece, a esta altura alçado à condição de profeta e deus supremo, a quem todos devem servir e que, mesmo autodenominado “misericordioso”, pune cruelmente quem quer que seja ao menor sinal de oposição.
Quando a história de fato começa, o Snowpiercer já deu 17 voltas pelo mundo, estamos em 2031 e não há nenhuma expectativa de que o planeta volte ao seu estado normal. E uma rebelião está prestes a explodir, na forma de Curtis (Chris Evans), que sonha com um tratamento igualitário e planeja tomar à força o controle do trem para devolvê-lo ao cocriador do empreendimento, Gilliam (John Hurt), agora um ilustre habitante da segunda classe. Para tanto, Curtis, a esta altura já convertido em líder, deverá conduzir seu grupo a cada um dos vagões/cômodos do supertrem, como as fases de um jogo, até chegar ao inevitável confronto na sala das máquinas, no primeiríssimo carro.
O enredo, como se percebe, abre brechas para diversas discussões existenciais. E Bong Joon-Ho não perde tempo em explorar cada uma destas ramificações, sem perder a mão em cada detalhe da trama. Como um trem sempre em movimento adquire mantimentos? Aliás, como é possível o trem nunca parar? E se alguma peça quebra? E as crianças ocasionalmente tiradas de seus pais no último vagão? Por que boa parte dos integrantes da segunda classe tem alguma mutilação? E o controle de natalidade dentro deste ambiente? Sim, estas e outras perguntas serão, em algum momento, respondidas.
Cada vagão é cuidadosamente construído para refletir o estado emocional dos seus ocupantes – o cinza sujo e empoeirado que prevalece na primeira parte do filme, enquanto estamos dentro dos carros da segunda classe, contrasta fortemente com o colorido utópico e surreal dos primeiros vagões, aqueles destinados à classe favorecida – por sinal, é perceptível aqui uma influência forte dos trabalhos de Terry Gilliam (claro homenageado, batizando inclusive um dos personagens centrais) e de Jean-Pierre Jeunet (O Fabuloso Destino de Amélie Poulain).
Este clima de fantasia imposto a cada cenário transforma o trem em um personagem próprio, dotado de personalidade. Nada mais natural, já que a fita se passa quase inteiramente dentro do Snowpiercer e temos pouquíssimos vislumbres do mundo exterior no decorrer das duas horas de projeção.
Esta personalidade é também uma forte característica dos vários personagens que conhecemos no decorrer da projeção. Construídos de maneira propositadamente caricatural a la Jogos Vorazes, cada um deles tem algo a dizer sobre o sentimento de prisão e a indecisão entre o risco (sair do trem, lutar pelos seus direitos), o conformismo (aceitar a vida sem se arriscar, as condições revoltantes a que são submetidos) e o sentimento de não-pertencimento.
Embora nunca verbalizada, a sensação de prisão é latente e rende momentos excepcionais, como a sequência da chegada ao vagão-cozinha e o confronto entre o grupo de Curtis e os guardas de Wilford no escuro, em meio à travessia em um túnel. Por sinal, as poucas sequências de luta, que referenciam a todo momento o já clássico Oldboy, de Chan Wook-Park (produtor deste filme), são espetacularmente claustrofóbicas – por serem filmadas em um ambiente minúsculo, a sensação que se tem é a de que as paredes da sala de cinema diminuem a cada cena.
Claro que nem tudo são flores. Expresso do Amanhã (quem raios deu este título nacional tenebroso a este filme? :D) tem lá suas falhas; muitas das questões levantadas são respondidas de forma bastante crível, enquanto outras exigem que o espectador faça bom uso da “suspensão de descrença” para embarcar na ideia.
A decisão de transformar cada vagão em um mundo particular é excelente, mas algumas destas ambientações são tão bizarramente alegóricas e kitsch que quase põem tudo a perder, a exemplo do vagão-escola. Por sinal, a caricatura, os exageros e o tom de sátira aplicados a cada personagem “do lado nobre” funcionam muito bem no caso da bajuladora Mason vivida por Tilda Swinton (a melhor do elenco), mas incomodam DEMAIS no caso da professorinha grávida interpretada por Alison Pill. O final é MUITO controverso, ainda que para mim tenha funcionado muito, muito bem. E alguém me explica a função da personagem de Octavia Spencer, que tem ligação com um dos mais importantes personagens da história mas, sozinha, em nada acrescenta?
Defeitos, estes, que não maculam de forma alguma o resultado final. Expresso do Amanhã é um trabalho que deve e merece ser visto, porque é um primor em técnica e atuação, porque é espetacularmente bem dirigido, porque é lindo visualmente falando, porque traz um sopro de criatividade e novidade ao cinema de ficção científica dos dias de hoje e também porque carrega uma mensagem impiedosa e real, que pode nos deixar pensando um bom tempo ao final da projeção.
O mundo pode ser “resetado” quantas vezes se fizer necessário; o ser humano, com esse tal de livre-arbítrio, é o verdadeiro câncer do planeta e o único responsável por toda calamidade natural que vier a enfrentar, e nada estamos fazendo para reverter este quadro. Não acredito que haverá um trem para nos salvar – mesmo sabendo que Expresso do Amanhã esteja possivelmente certo nesse lance de que nada adianta, pois já não temos mais salvação.
Será? :(
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